XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio I
O que a paixão que move Antígona ensina a nós psicanalistas
Ana Laura Prates
Causada pela urgência do tema de nosso XXII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil – “As paixões do ser: amor, ódio, ignorância”, retomo uma vez mais a atualidade de Antígona, tragédia da famosa trilogia tebana de Sófocles, revisitada por Lacan. O que ela nos ensina, ainda, sobre o pathos estrutural do falasser?
Antígona é intransigente! Ela não aceita negociar com Creonte, abrindo mão de sua posição social e de poder em nome daquilo que não se pode aceitar. Tudo, mas isso não: a desumanização de um homem pela recusa da inscrição de seu nome na lápide é um crime contra a humanidade, e isso é inegociável. Antígona não é dada a grandes acordos nacionais, e não cede! Sua resposta ao tirano é um dos versos mais comentados da peça: “sou movida pelo amor, e não pelo ódio”.
Lacan propõe a seguinte questão: “Antígona é levada por uma paixão, e trataremos de saber por qual” (LACAN, 1959-60, p. 308). Ora, se ela é movida pelo amor, não se trata, entretanto, do amor cristão convertido em caridade (caritas). Para o Cristianismo o amor é tomado como uma das três virtudes teologais, que são indissociáveis e representam a presença do Espírito Santo no homem: fé, esperança e caridade (amor). Elas significam a crença em Deus, a esperança da salvação no reino dos céus e amor a Deus acima de todas as coisas, bem como amar ao próximo como a si mesmo. Assim, segundo Paulo de Tarso, em sua carta aos Coríntios, a maior das virtudes é o amor. A Psicanálise, desde Freud, aponta para o quão insensato é esse mandamento que programa o que Lacan chamou de agressividade imaginária. O Cristianismo retoma a sustentação de um Ser supremo que está posto desde Aristóteles pela via do ser divino: a união a Deus pela via do amor.
Lacan desloca a trindade que faz Um do Cristianismo para uma trindade sustentada por um furo provocado pela perda de ser operada pela linguagem. O ser perdido, ao falar, apenas se realiza pela via das chamadas paixões do ser, as quais veiculam o desejo. São elas: o amor, o ódio e a ignorância. Desde Freud sabemos que amor e ódio são indissociáveis. Na bela poesia de uma canção brasileira, escutamos: “As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam. Porque o amor e o ódio se irmanam nas fogueiras das paixões”. A essa dualidade freudiana, situada no plano das pulsões, Lacan introduz um terceiro elemento que se articula ao horror ao saber: a paixão da ignorância.
Se Antígona não se move pelo ódio, o que ela verdadeiramente combate é, justamente, a paixão da ignorância – em muitos casos revestida pelo esquecimento e pelo apagamento da memória. Lacan retoma a figura da Até grega que aponta para ações inflexíveis. Antígona não é caridosa, mas intransigente, inflexível e indignada, o que se revela através de sua posição diante da irmã, Ismênia, logo nos primeiros versos: “O rol de horror está completo: dor, despudor e desonor, que dissabor nos falta. O general promulga um decreto à cidade toda. Sabes algo de seu teor ou desconheces os males que inimigos têm causado a quem ambas amamos? Nada ouvistes? ” (versos 5-10/ Trajano Vieira). Ela se insurge, portanto, contra o não querer saber a respeito da desumanização operada pelo tirano, bem como suas consequências para o laço social e a Polis.
Porém, há ainda algo a acrescentar: Lacan ressalta o “aspecto implacável, sem temor e sem piedade (compaixão) que se manifesta, a todo instante, em Antígona” (LACAN, 1959-60, p. 330). Ora, para Aristóteles, uma das principais funções da tragédia era justamente a de oferecer a possibilidade de purgação da compaixão e do horror, pela via da identificação com os conflitos encenados pelas personagens. Antígona, portanto, radicaliza essa experiência através de sua posição. Ela não está “sofrendo junto”, mas absolutamente só, e tampouco teme seu destino trágico. Eis um dos aspectos mais relevantes da aposta de Lacan em propor uma relação de Antígona com o desejo do analista. Ele o faz, articulando a resposta subversiva do analista à demanda de felicidade do analisante. Eis o equívoco colocado desde o início sob transferência, já que não é o final da análise aquilo que nos pedem. O desejo do analista suspende qualquer promessa de realização do ser, introduzindo em seu lugar um desejo prevenido.
Seguindo essa orientação, podemos acompanhar o paradigma de uma nova relação com o tempo, não mais pautada no medo que é a projeção temporal do desconhecido e que programa a paralisia, sendo, portanto, avessa ao ato. É nessa mesma lógica da expectativa diacrônica avessa ao ato que encontraremos, num primeiro momento, a esperança. Poderíamos propor que, se Antígona não é movida pelo medo, tampouco o seria pela esperança. Como canta o coro: “Para muitos a esperança multívaga é dádiva, para muitos, trapaça de Eros volúvel. Insinua-se em quem nada sabe, até que avance o pé no fervor da flama”. Tratar-se-ia, assim, de uma paixão errante, fruto da trapaça do amor e da ignorância.
É o pensamento de Kant que, ao retirar Deus da questão filosófica, introduz a perspectiva do ato entre o saber e a esperança, em “Crítica da Razão Pura” (versões de 1781 e 1787): “Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa quanto prática) concentra-se nas seguintes três perguntas: o que posso eu saber? O que devo eu fazer? O que está me permitido esperar? ”. É a partir dessas perguntas que Lacan aborda a questão da esperança em Televisão (1974, p. 541): “A única chance que ex-siste decorre apenas do feliz acaso/felicidade (bonheur) com que pretendo dizer que a esperança não adiantará nada, o que basta para torná-la inútil, isto é, para não permiti-la”.
Ora, em Antígona, o paradigma cronológico da linearidade, posteriormente trabalhado por Espinosa (medo/espera) é aquele que cabe a Creonte. Conforme profetiza Tirésias: “Antes de o Sol cumprir um grande rol de circunvoluções, irás trocar cadáver por cadáver de tuas vísceras. (…) Cronos não tarda e logo descortina no paço o choro feminino e másculo” (versos 1064 – 1080). Com efeito, encontramos na história da palavra esperança um parentesco, SPEN – PENDERE, que remete a pêndulo e também dá origem a pênis. SPE, espalhar, é da mesma origem de esperma: a linearidade cronológica de valência invertida entre medo e esperança está sustentada na lógica da contabilidade fálica do que se pode esperar.
Antígona, por sua vez, não se queixa e, tampouco, teme a morte. Sua temporalidade não é pautada pela diacronia da espera, mas pela ética do ato. Para ela: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Seria o caso, entretanto, de nos perguntarmos se não haveria outro tipo de esperança em Antígona e, nesse caso, se haveria uma esperança lacaniana, não avessa ao ato, já que esta é sustentada em outra lógica do tempo que subverte a cronologia linear. Antígona rompe com essa lógica fálica, apresentando sua bela e insuportável imagem, e dando corpo a um desejo incalculável. Como nos lembra Barbai, Antígona traz no nome a ética do ato, um corte: Anti-gona: aquela que se separa do Outro e pode nos ensinar a como extrair da angústia sua certeza por meio de um desejo decidido. Esse é seu antídoto contra a paixão da ignorância, permitindo cingir o horror ao saber. E é também o nosso! Que tenhamos um bom Encontro!
Coordenação Comissão Científica:
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Coordenação local:
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Cláudia Valente
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Glauco Machado (coordenador)
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Equipe de Prelúdios:
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Zilda Machado