XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio XI
A ignorância enquanto paixão
Alba Abreu Lima
O termo paixão vem do latim passio-onis, que significa sofrimento. Em Aristóteles, pathos é sinônimo de “paixão”, do grego Passus, pati, Patho, doença. O pathos moveria o homem para a práxis e seria um elemento constitutivo do próprio sujeito.
Os estóicos defendiam que as paixões deveriam ser extirpadas se não dominadas, transformando, portanto, a sabedoria numa cirurgia das paixões.
O poeta romano Horácio dizia que a condição mediana – mediocritas – garantiria uma condição de tranquilidade ao homem. A paixão deveria ser eliminada pelo homem sábio, aquele que deveria manter-se no justo meio. Aurea mediocritas era o ideal de vida onde os excessos deveriam ser evitados.
O cristianismo reforçou a definição de sofrimento na Paixão de Cristo, onde há uma simbolização do sofrimento deste como expressão de amor, promovendo a idealização do termo paixão. Os místicos que surgiram, como São Francisco de Assis, começaram a apresentar no corpo os estigmatas – que são marcas de um gozo no corpo – surpreendendo e ultrapassando as normas da igreja com essa mostração tal e qual as chagas de Cristo.
Na ciência moderna, seguindo Descartes, “paixão” é um termo que articula a experiência da relação da mente com o corpo. Portanto, as paixões não são modalidades exclusivas do corpo ou da alma, mas do composto, da experiência da união destes.
Na literatura, nas artes em geral, as paixões do ser são demonstradas como figuras do imaginário da paixão, presentes na cultura e na experiência subjetiva de cada época.
Na psicanálise, as paixões não têm o sentido de passividade, passio, pois implica numa ação. Freud coloca a interpretação como aquela na qual o analista suporta a paixão da transferência. Cada vez que ele é tomado como objeto da paixão – seja pelo ódio ou pelo amor – o que a associação livre coloca em marcha é o encontro com a verdade do desejo, veiculando o falar sem saber.
O sujeito, antes do início do processo de análise, está na posição de sujeito que ignora, por isso mesmo pode sustentar uma abertura à transferência. Com sua falta-a-ser, ele busca aquilo que poderia encontrar no Outro para o preenchimento dessa falta. Ao analista, apesar de estar situado pelo analisando na posição de sujeito-suposto-saber, cabe a dimensão da ignorância pois, se é interrogado a responder pela posição de saber, só lhe resta abrir caminhos pelas vias do saber, na abstinência.
Freud descreve o amor e o ódio como dois entes distintos, pares opostos que podem se inverter e uma paixão dar lugar à outra, nos remetendo à Banda de Moebius. Lacan chegou a cunhar o termo hainamoration (amódio) para marcar como são indissociáveis, o que é demonstrável na experiência clínica.
Lacan nos ensina, com o Estádio do Espelho, que a hainamoration (amódio) se situa no eixo imaginário, o do narcisismo, e somente a partir da introdução da ignorância, a especularidade a-a’ imporia o simbólico. Nesse momento de seu ensino, 1953, ele criticava a Psicologia do Eu e os pós-freudianos que rebaixaram a psicanálise ao nível do especular. Lacan rompe com os analistas que propõem a análise como experiência dual, imaginária, intersubjetiva e no texto Variantes do Tratamento Padrão comenta os desvios da clínica freudiana, da supremacia do EU e assevera que “o analista detém toda a responsabilidade, no sentido pesado que acabamos de definir a partir de sua posição de ouvinte” (LACAN, 1955-1998, p 333). Ele pondera: “o que o analista deve saber? Ignorar o que ele sabe. A ignorância aqui não pode ser entendida como uma ausência de saber, mas tal como o amor e o ódio, como uma paixão do ser: porque ela pode ser, à semelhança deles, uma via em que o ser se forma. É justamente aí que reside a paixão que deve dar sentido a toda formação analítica, como fica evidente simplesmente ao nos abrirmos para o fato de que ela estrutura sua situação” (LACAN, 1955-1998, p 360).
Em O Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953/1954-1996, p. 309) Lacan, parte das três paixões do ser para abordar a transferência na clínica). Ou seja, ele adiciona a ignorância à dualidade freudiana amor-ódio, fazendo referência aqui aos seus termos RSI, colocando que a escuta tem a ver com a posição da ignorância, na junção entre o Real e o Simbólico.
O analista, mais além da transferência negativa ou positiva, sustenta a relação transferencial a partir de sua relação com o saber. Lacan diz: “O analista não deve desconhecer o que chamarei o poder de acesso ao ser da dimensão da ignorância. (…) Não tem de guiar o sujeito num wissen, num saber, mas nas vias de acesso a esse saber. Deve engajá-lo numa operação dialética, não dizer-lhe que se engana, porque está forçosamente no erro, mas mostrar-lhe que fala mal, quer dizer, que fala sem saber, como um ignorante, porque são as vias do seu erro que contam” (1953/1954-1996, p. 317).
Enfatizando que a ignorância é uma paixão, Lacan nos remete ao pensador renascentista Nicolau de Cusa que denominou de ignorantia docta, o saber mais elevado, justamente aquele que admite os limites, o S (A/). Lacan considera, então, que a posição do analista deva ser esta, a de uma ignorantia docta, o que não quer dizer sábia, mas formal, e que pode ser, para o sujeito, formadora. A ignorantia docta, em Freud, talvez pudéssemos chamá-la de atenção flutuante, que está consolidada como uma regra de abstinência, isto é, um abster-se de compreender. Desejamos saber que não sabemos, se conseguirmos isso, talvez alcancemos a douta ignorância.
Referências:
LACAN, Jacques. Variantes do tratamento-padrão. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954; Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
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