XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio XVIII
A paixão da ignorância
Vera Kemper
Dentro da proposta do XXII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil de interrogar as paixões do ser: amor, ódio e ignorância, me coloquei a interrogar a paixão da ignorância.
Lacan, ao iniciar o seminário O saber do psicanalista, fala da ignorância como uma paixão, que para ele não é uma menos valia e nem tampouco um déficit. A ignorância, nos ditos de Lacan, é outra coisa, a ignorância está ligada ao saber. (LACAN 1971-72, p.12)
Lacan sublinha a ignorância, que retira do renascentista Nicolau de Cusa, como a “douta ignorância”, ou seja, o saber mais elevado. É uma maneira de fazer dela um saber estabelecido. É essa correlação em particular da ignorância com o saber que vai nos interessar. A tese de Lacan sobre o enigma do saber é complexa, e ele próprio diz em Mais, Ainda que “o saber, ele é um enigma” (LACAN, 1972-73, p.188). Ainda nesse seminário, para Lacan, “o saber é o que se articula” (p.188) certamente nos ditos da fala, daí a noção de um saber falado. Ele tem sua morada na língua, mas não basta um conjunto de significantes para fazer o que chamamos de saber, pois o saber se situa no nível do gozo. A fórmula do enigma é que o saber se goza.
Lacan fala em O saber do psicanalista que “mudar o assentamento do saber” (p. 13) não é uma coisa que acontece de um dia para o outro e deseja “boa sorte” para aqueles que tiverem a “boa inspiração” de segui-lo. Em relação a essa questão, estamos acostumados pela experiência a perceber que não é necessário compreender algo para que esse algo mude. “A questão do saber do psicanalista não é absolutamente que isso se articule ou não, a questão é saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo.” (p. 24)
Nos seus Escritos (p. 472), Lacan sublinha que para um analista operar “não se trata de nível mental, naturalmente, mas do fato de que a ordem simbólica só é abordável por seu próprio aparelho. Pode-se fazer álgebra sem saber escrever? Do mesmo modo, não se pode tratar o mínimo efeito de significante, nem tampouco enfrentá-lo, sem pelo menos desconfiar do que está implicado num fato de escrita.” Para ficar mais claro, com Freud em “Análise terminável e interminável”, aprendemos: “Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais que necessitará sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade.” (FREUD 1937, p.265). Se, com Freud, aprendemos que a própria análise do analista é a condição para seu futuro exercício, para Lacan, toda análise quando levada a seu término produz um analista, com a condição que lhe advenha um desejo inédito sem o qual poderá até ter havido um final de análise, mas nenhuma chance de haver psicanalista.
Apesar de Freud usar o termo profissão, tornar-se analista não é uma escolha profissional, mas uma virada ou uma passagem que só se realiza no interior de um processo analítico, uma metamorfose do sujeito. O que permite ao analista abrir mão de sua condição de sujeito na condução da análise é o processo que em sua própria análise o levou a destituição subjetiva quando do seu término. Quinet (1991, p.103) diz que outra maneira de abordar essa metamorfose é o que Lacan designou por travessia da fantasia. Atravessar a fantasia fundamental não significa eliminá-la, e sim percorrê-la para que o sujeito possa experimentar-se nos dois polos que ela encerra: o do sujeito e o do objeto.
Como sujeito, foi isso que ele fez o tempo todo em sua análise: experimenta-se como faltante, como aquele a quem falta o complemento que a fantasia preenche. A travessia da fantasia corresponde à destituição subjetiva, pois significa essencialmente ir para além dela, para que o sujeito se reconheça num “sou” conectado ao objeto – objeto que subverte o sujeito. “A destituição subjetiva”, segundo Colette Soler, em Os afetos lacanianos, é fazer o sujeito reconhecer-se como objeto. A travessia da fantasia corresponde à destituição subjetiva, na medida em que é a fantasia que sustenta a instituição subjetiva: a posição do sujeito na fantasia, ou seja, sua relação com o objeto é assegurada por suas identificações. A fantasia é o que dá o enquadramento do sujeito com a realidade: sua janela para o mundo.
É percorrendo os meandros de uma análise levada a seu termo que o analista se vê liberado das amarras das identificações que mapeavam sua realidade. Nesse momento, nada pode escamotear a castração. Esse sujeito destituído encontrará sua certeza em seu ser de objeto. E, ao final do percurso de análise, pode ocupar a posição da “douta ignorância”, a do saber mais elevado, “que não quer dizer sábia, mas formal, e que pode ser para o sujeito formadora.” (LACAN 1953-54, p.362)
Enfim, o que permite o analista abrir mão de sua condição de sujeito para consentir com o lugar de semblante de objeto a na condução de uma análise é o processo que em sua própria o levou à destituição subjetiva quando de seu término. É na passagem de psicanalisante a psicanalista, momento de passe, que podemos apreender melhor o desejo de saber, antes entravado pela neurose. A destituição subjetiva e a travessia da fantasia criam a possibilidade do ato analítico, dado que no ato não há sujeito.
É essa correlação particular da ignorância com o saber que vai levar Lacan a dizer que não é o amor e nem o ódio, mas a ignorância que está no topo das paixões do ser, e faz dela a única paixão digna do analista. Mas não é a paixão que faz o analista operar, mas o desejo do analista e seu saber.
Como ocupar esse lugar sem ter ele mesmo passado pela experiência em sua própria análise de reconhecer-se como objeto de gozo, causa de horror e desejo? O que foi causa de seu horror de saber se torna nesta passagem de psicanalisante a psicanalista a causa de seu novo desejo de saber. Esse mais-de-saber é o que Lacan designa como o “gaio saber” (gay sçavoir), que tem como correlativo afetivo não a paixão da ignorância, mas o entusiasmo. É no longo percurso de uma análise, “desembaraçado” do sujeito suposto saber, confrontado com a castração, sabendo que não se pode chegar a “um tudo saber”, que a castração, nesse momento de virada, incide no saber. Não mais como “nada – de – saber”, mas como “nada – de – saber – tudo”. A falta no saber é constitutiva desse novo desejo – desejo de saber – cuja causa é o objeto a caído da fantasia, objeto irremediavelmente perdido. Esse desejo de saber não se dirige mais ao Outro; não é nem desejo do Outro nem tampouco desejo ao Outro, pois não há mais Outro.
O saber é então saber sem Outro, um saber solitário, saber de solidão. Em compensação, a dimensão do desejo causado pelo objeto a é acentuada, condição de emergência de um novo saber que causa entusiasmo – sem o qual, não há analista.
Fico por aqui com a esperança de encontrá-los em Curitiba para juntos continuarmos a refletir acerca do tema do Encontro Nacional. Até lá!
Juiz de Fora, 3 de outubro de 2022.
Referências:
Freud, S. (1937). Análise terminável e interminável. Vol. XXIII Ed. Standard Brasileira das Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987.
Lacan, J. (1971-72). Seminário, O saber do Psicanalista. Publicação interna do Centro de Estudos Psicanalíticos do Recife.
Lacan, J. (1953-54). Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
Lacan, J. (1966). “Situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956”. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Lacan, J. (1964). Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Lacan, J. (1972-73). Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Lacan, J. (1973). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Quinet, A. (1991). As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
Soler, C. ( 2022 ). Os afetos lacanianos. São Paulo: Aller, 2022.
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