XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio XIX
A PAIXÃO SEGUNDO MD[1]
Dominique Touchon Fingermann
O vento sopra do continente ele repele
o oceano
As ondas lutam contra o vento
Elas avançam
abrandadas por sua força
e pacientemente chegam
na murada
Tudo é se esmaga
Te amo mais longe que você
Amarei qualquer um que me ouvir gritar
Que te amo[2]
“A paixão segundo MD”, título que evoca o romance A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, anuncia uma fraternidade entre essas duas escritas, duas mulheres que vagarão a vida toda em torno da “palavra furada” que as cativa, que as exila. Um arrebatamento assustador, que não cessará. Sempre recomeçado, tal como o mar – o mar sempre excessivo, que acompanha em contraponto, em surdina, em estrondo, essa paixão de Marguerite Duras pela escrita. MD passará a vida refazendo esse pas de l’écriture, esse passo da escrita que excede o silêncio e o grito.
A extensão infinita do mar, assim como seu estrondo e suas dolorosas reviravoltas, ao mesmo tempo velam e revelam esse silêncio e esse grito no princípio da paixão de escrever.
ISSO NÃO CESSA DE NÃO SE ESCREVER
A paixão segundo MD é sua maneira própria de fazer ressoar, aqui e ali, o eco de um grito. Mesmo quando as palavras, os silêncios e até a música, esboçam, cambaleiam, sibilam aqui e ali e se esforçam para fazer ouvir modulações intermediárias, é o grito que atravessa nossas sensibilidades. Horroriza-nos, faz-nos estremecer: “uma incerteza trêmula”.[3]
Disse a mim mesma que escrevíamos sempre sobre o corpo morto do mundo e, da mesma forma, sobre o corpo morto do amor. Que era nos estados de ausência que o escrito se precipitava para nada substituir, mas para daí consignar o deserto por ele deixado daquilo que fora vivido ou que supostamente havia acontecido.[4]
Ela diz escrever no espaço entre – entre a música e o silêncio, uma escrita do suspiro. O grito é abafado, amortecido como um suspiro.
Nos topamos com a sua teimosia em querer dizer o impossível de se dizer; de porto em porto, de livro em livro, seu estilo transporta a repetição, a ressaca, o repisar desse labor que constitui sua obra. E isso pode incomodar.
Ela irrita, como sabemos, mas também captura, cativa, suspende: deslumbramento.
Será o silêncio? A música? Aquelas palavras do dia a dia que caem, assim, como se nada? Ou ainda sua intermitência, seu ritmo inusitado e sua repetição, que cava, no coração das palavras, a ressonância de sua terrível insuficiência? Ou será a quebra brutal das frases, as suspensões inesperadas, as indisciplinas gramaticais, que nos fazem voltar sempre a essa “prática da letra[5]” que vai esmiuçando para nós os vestígios desses tempos imemoriais, inesquecíveis?
É possível ouvir novamente a valsa de Brahms op. 39 n°15[6] sem ouvir a dilaceração de Agatha, sem sentir a imensidão do mar, seu peso, seu mistério, que separa definitivamente de todo o senso comum?
É possível ainda olhar para o mar, seus abraços cada vez mais vastos, sua planura infinita, sem nos deixarmos dominar pela impossibilidade de dizer, até que as palavras de Marguerite Duras caiam em cima de nós?
Hoje o mar está ruim, sem mais. Ontem havia uma tempestade. Ao longe, ele está salpicado de cacos brancos. De perto, é todo branco, branco em abundância, ao infinito, dispensa grandes braçadas de brancura, abraços cada vez mais vastos como se recolhesse, carregasse para seu reinado um misterioso pasto de areia e luz.[7]
É como o gozo. Nada que preste pode ser dito sobre ele.
Um grito suspenso, contido, estrondoso, que, todavia, fura a escrita: travessia.
Ela furou o mar com seu corpo e desapareceu no buraco d’água, o mar se fechou novamente. Até onde a vista alcançava, não se viu nada além da superfície nua do mar, ela se tornara não encontrável, inventada. Então, de repente, ele se levantou na pedra branca. Chamou. Um grito.[8]
O grito fura a escrita, de um lado ao outro.
Grito de amor – de ódio – de desolação – de ignorância, antes de tudo.
Somos tomados pela paixão, não a decidimos, nem a calculamos.
Somos dominados por essa paixão por Dizer. Tem que ser dito… ou pior.
MD, A PAIXÃO DA IGNORÂNCIA
A ignorância impõe-se como o enigma do Outro, do Sexo, da Loucura, da Mãe; o enigma do ser, sempre recomeçado. O enigma, cúmulo do sentido.
Nos confins do fôlego, nos confins do sentido está o canto da mendiga, como um uivo que se modula em gemido, que atravessa livros e filmes de MD: estranheza encarnada, nua e crua.
O enigma – paixão da ignorância – empuxa ao cúmulo, ao amor, ao ódio.
Amo em você mais que você, o que escapa ao meu saber, tomo para mim, te amo, diz ela. Surprise, éprise, méprise – surpresa, deslumbrada, ludibriada.
O que em você escapa ao meu saber, a minha posse, eu o odeio mesmo, então te prendo, te devoro, te mato.
Destruir – diz ela.
Ou escrever, ainda, sempre. Levar o dizer até seus extremos, seus estremecimentos, seus excessos. Como um grito.
À corps perdu, perdidamente. Sem eira nem beira.
A corrida das ondas no vento, quem a dirá?[9]
Ao longo deste verão de 1980 – em que MD olhará tanto para o mar, a perder de vista – o seu mistério a preservará – viva, pois solicitará, mais que nunca, a urgência do Dizer. Sua impudência fará valer este dizer. Não dá para não esbarrar na impudência de MD. Ela exaspere, dizem; todavia, os excessos, os descarrilamentos, os estiramentos de sua letra repentina, de sua gramática escandalosa e de sua poética sem pé nem cabeça, tornam irresistivelmente presente essa impudência, ou seja, essa coragem sem vergonha de fazer o dizer passar à escrita.
O mar se tornou, a perder de vista, o teatro da chuva.
Essa força do mar, não a conhecemos bem. Estamos apenas começando a conhecê-la.
A ignorância começa cedo, desde o início dos balbucios; ela se apresenta para cada um, nos percalços da existência, de maneiras tão diversas.
As ficções de MD insistem em testemunhar, aqui e ali, as emergências variadas da ausência de saber absoluto sobre a Coisa que as coisas da vida, suas contingências, fizeram ricochetear, aqui e ali. A morte do pai, o desamparo da mãe, seu pesar infinito, seu dilaceramento, o mar que transborda e invade os arrozais, o rompimento das barragens, a traição um dos outros, a brutalidade do irmão mais velho, a perplexidade do irmão caçula, a paixão teimosa do jovem chinês, o desejo impensável, o excesso do sexo, de novo e sempre, e sempre recomeçado, desde o início.
Até o fim. C’est tout. Só isso.[10] Diz ela.
O céu estava desnudo e branco, o mar, porém, ainda era pura fúria. Ficou muito tempo assim, nesse estado, você sabe, nesse estado noturno de aberração e vaidade, insone e velho. Debateu-se por muito tempo na luz que o iluminava, como se tivesse que completar esse imbecil esmagamento de suas próprias águas, presa de si mesmo, de uma grandeza inconcebível. Como no primeiro dia, ele levava para a praia as braçadas brancas de sua raiva, trazia-as de volta para si, como se deve, como um animal, as águas, como o passado, as cinzas dos mortos.[11]
MD, A PAIXÃO DO AMOR
Hiroshima, mon amour, L’Amante anglaise, L’Amour, L’Amant, L’Amant de la Chine du Nord etc.: ela não tem vergonha de dizer do amor, e anunciar nos títulos de seus livros, a sua constância inabordável. E no entanto, as palavras – há tantas, há muitas, demais.
É louco o quanto posso te amar
O quanto posso te amar às vezes
Às vezes, queria gritar
Porque nunca amei… [12]
Paixão suspensa, amor à beira do abismo, retido.
Há até mesmo um livro de 1971 que leva esse nome, L’Amour: um livro curioso, em que os passos incansavelmente deambulam pelo beira-mar, vaivém, idas e vindas, entrecruzamentos – um homem, uma mulher, um terceiro homem: pas possible.
Stein, Alissa, Elizabeth Alione, Max Thor: esconde-esconde, passe anel, de Détruire dit-elle.
O Baile de Calcutá, Lol V Stein, Anne Marie Stretter, Michael Richardson.
O baile de India Song e o paso doble de Alessio, que pontua suavemente um improvável pas de deux, Delphine Seyrig, o vice-cônsul, o adido cultural… até o desastre.
E também, havia Lol no campo de trigo, constantemente redescobrindo esse arrebatamento no amor extremo de Tatiana Karl e Jacques Hold…
Amor em abismo, ainda e sempre.
E sempre, para além de toda razão, os nomes próprios do amor: Emily L, Vera Baxter, Aurelia Steiner, Aurelia Steiner, Aurelia Steiner…
Não há mais vento, mesmo no beira-mar. Ele está baixo, distante, pode-se adivinhar a extensão opaca das areias, mal se ouve o arfar de suas ondas que caem, no silêncio de longe em longe, seu resfolego.[13]
Pas de deux, pas possible, o amor de Aurelia Steiner no quadrado branco do campo de Auschwitz.
Hiroshima, meu amor: oximoro fundamental da violência do amor, sempre e por toda parte, tensionado para além da impossibilidade de vivê-lo.
O amor, no entanto, persiste aqui e ali, ele assombra todas as paisagens, arde em todas as praias do impossível, de Les petits chevaux de Tarquinia às paisagens devastadas de S. Thala.
MD, extenuante, vai pôr em jogo as chicanas e arcanos do amor com todas as suas inflexões possíveis, como Beethoven havia declinado as 33 variações[14] da Valsa de Diabelli, que Duras nos apresenta, aqui e ali, nas curvas de seus textos.
Varidade do amor, caminhos diversos da verdade própria de cada um, variações do mar incansável, invariável, inverossímil.
O tempo estava encoberto e a tempestade chegara trazida pelo vento norte. Vento muito forte esse, maciço, sem trégua, um muro, liso e reto. E o mar revoltou-se novamente.[15]
O amor está sempre presente ali, entre a fuga e as escapatórias do desejo e as estâncias do gozo.
Por muito tempo, Marguerite nos fez passear pelas margens e pelas derivas do desejo.
Le marin de Gibraltar e Emily L. nos fazem atravessar os mares, sempre recomeçados. Em busca desse objeto único, definitivamente, essencialmente perdido, até o estilhaçamento.
Do mesmo quarto de onde lhes escrevo, ela esteve a noite inteira no escuro e maciço rugido do mar. Entre suas águas, deslocamentos se operavam, terríveis, estilhaçamentos, desabamentos colmatados ao surgirem, cuja violência desvanecia assim que a superfície era atingida, o ar mal tocado, na irrupção de uma enorme brancura.[16]
Em um dado momento, ela abandonou o pudor e, sem vergonha, decididamente escreveu o gozo. Forçosamente, impossível de escrever.
O mar é alto, plano, sua superfície é lisa, perfeita, uma seda sob o pesado céu cinzento.[17]
As estâncias do gozo que transtornam o bom senso do desejo e deixam o amor em suspenso se mostram, por fim, em L’Amant, L’Amant de la Chine du Nord, La maladie de la mort, L’Homme assis dans le couloir.
Os ditos tornam-se tensos pela impudência do Dizer.
Venham ver, subitamente tudo está claro, o mar, o céu, o mar se enfurecia ao amanhecer, tornava-se mesquinho e sombrio, e aqui está agora, feliz. O mar não tem espírito, nem inteligência, nem coração, nada mais é que esse devir material, sem saída, sem fim. [18]
MD, A PAIXÃO DO ÓDIO
Ela não pronunciará essa palavra, mas reconhecemos Duras nessa paixão; ela dirá “a destestação ”: da mãe, do irmão, até o Vice-consul e o horror pela lepra, seu crime abominável, o de L’Amant anglaise, e muito além, com L’homme assis dans le couloir.
Há também aqueles que morrem de amor, como o amante de Anne Marie Stretter, o jovem adido cultural, ou a de Elisabeth Alione.
O amor em desastre leva à morte, como o crime iniciático de Moderato Cantabile, que ressoa como um grito e sidera Anne Desbaredes até as bordas do desejo, a menos que se trate do abismo da morte vislumbrada, da loucura.
A tensão do amor é constantemente sustentada pelo desmoronamento, dilaceramento, arrancamento, desesperança, repulsa, aniquilação do outro, pela loucura. A violência extrema.
Você me mata,
Você me faz bem
Você me mata
Me devore
Me deforme até a feiura.[19]
O amor louco leva ao limite a sua impossibilidade, até o grito, o crime, como em Moderato Cantabile, como em Émilie L, em que o Capitão queima o poema de Emily porque aquelas palavras o ultrapassam, o confundem, o desconcertam, ele se perde nelas, se joga abismaticamente; ele a perde, queima o poema, e a acompanhará em sua deriva no decorrer da loucura do mar.
As marés de setembro estão ali. O mar está alvo, louco, louco de loucura, de caos, se debate numa noite contínua. Toma de assalto os quebra-mares, as falésias de argila, dilacera, eviscera o fortim, as areias, louco, como veem, louco.[20]
“Te amo e te dilacero”, dirá Alissa.
Destruir, diz ela.
A luz já se abrandava, o mar estava cinza sob o céu descolorido e vazio, era como se trabalhasse, já estranho, sim já trabalhando, fazendo vento, frio. [21]
“Que o mundo vá à ruína”.[22]
ISSO NÃO CESSA DE SE ESCREVER
“Nunca fiz um livro que não fosse uma razão de ser enquanto está sendo construído… Quaisquer que fossem os livros, por toda parte, mas essa PAIXÃO, descobri, aqui… O que fazer com a solidão que vivia nesta casa… O que fazer, talvez escrever.
…É cair num buraco, no fundo de um buraco de solidão quase total, e descobrir que só a escrita te salvará.
Ficar sem nenhum assunto para livro, não pensar em nenhuma ideia de desenvolvimento de um livro, apenas a escrita, seca, nua, assim, terrível, terrível de superar”.[23]
A paixão pela escrita é a paixão pelo significante e sua inexorável perda.
Sempre esse tempo perfeito, esse mar plano, de um azul terno nos lugares mais escuros. Uma tempestade borra a cor e as linhas tão claras, mas passa rápido e o azul está lá novamente, a planura milenar do mar.
[1] Em referência ao título de Clarice Lispector, A paixão segundo GH.
[2] Duras, M. Les mains négatives.
[3] Duras, M. Détruire, dit-elle.
[4] Duras, M. L’Été 80.
[5] Lacan, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. XX
[6] Kantorov, A. Ver: https://youtu.be/d-90ysgiG28
[7] Duras, M. L’Été 80
[8] Duras, M. Savannah Bay
[9] Duras, M. Emily L.
[10] Duras, M. C’est tout.
[11] Duras, M. L’Été 80.
[12] Piaf, E. Les mots d’amour – Música de Savannah Bay
[13] Duras, M. L’Été 80.
[14] Beethoven, L. Variations Diabelli
[15] Duras, M. L’Été 80.
[16] Duras, M. L’Été 80.
[17] Duras, M. L’Été 80.
[18] Duras, M. L’Été 80.
[19] Duras, M. Hiroshima, mon amour.
[20] Duras, M. L’Été 80.
[21] Duras, M. L’Été 80.
[22] Duras, M. Le camion.
[23] Benoît Jaquot. Écrire, o filme
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