XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio II
Um amor mais digno
Lia Silveira
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…
(Florbela Espanca)
O neurótico é alguém que sofre e, nesse ponto em que brota o sofrimento, convoca o amor como lenitivo. Como na canção de Lupicínio, “julgam que a um lindo futuro, só o amor nesta vida conduz” e, sem saber que se “deixam o céu por ser escuro, vão ao inferno à procura de luz”. O inferno das relações amorosas, cenário tão cantado em verso e prosa, institui-se no momento em que, confrontado com a falta no Outro, o sujeito recusa-se a ficar sozinho e recorre às paixões na tentativa de recobrir o rombo que essa experiência deixa em seu ser. É assim que se escrevem cartas de amor, canções de amor, poemas de amor e, na nossa época, toda a mercantilização em torno do Instagr(amável). Ocorre que, apesar de todo esse blá, blá, blá, a verdade paradoxal é que o neurótico não ama ninguém. Para amar é preciso condescender com a castração, enquanto toda sua fantasia amorosa está, de fato, a serviço do não querer saber nada disso.
A análise se aproveita desse pendor para o amor. O analista se oferece para fazer semblante desse complemento buscado e finge acreditar na dor de amor que o sujeito deveras sente. Uma análise pode levar alguém a fazer uma passagem: de uma existência devotada à busca vã por completude para a liberdade de experimentar as dores e as delícias de ser o que é.
No começo, e ao longo de quase toda a jornada, o amor de transferência é o que sustenta o sujeito suposto saber. É ele que move o sujeito a voltar, uma vez e outra e outra ainda, desfilando na bobina da demanda todo o falatório com que supõe poder capturar no Outro aquilo que experimenta como falta. Ao suportar ser tomado nesse lugar, o analista permite que o sujeito aloje aí a miragem do objeto idealizado, instaurando assim a transferência, esse fenômeno que Lacan (1964/2008, p. 139) definiu como “a atualização da realidade sexual do inconsciente”. Trata-se da atualização do encontro sempre faltoso, aquilo que não cessa de não se inscrever para o ser falante e que a neurose tenta tamponar, recobrindo com a demanda o campo da libido. Essa crença num Outro que responda faz com que esse encontro seja vivido pelo sujeito como angústia, mau encontro, distychia.
Ao manter-se afastado do ideal onde é inicialmente situado pelo analisante, o analista vai a contrapelo da demanda, fazendo aparecer o que ela recobria e entregando ao sujeito o a, causa do desejo como sua existência mais radical, acompanhada de seu efeito subjacente de destituição subjetiva.
Perguntamos então: uma vez feita essa passagem que abre para o fim da análise, temos também o fim do amor? Certamente que não. No plano dos relacionamentos, embora a análise não prometa trazer seu amor de volta, com certeza abre os caminhos, torna-os pelo menos possíveis. No entanto, a questão mais importante que fica para a psicanálise é a que recai sobre o que fazer, no fim, com os restos do amor de transferência.
Lacan não concordou com a proposta de que se daria aí uma “liquidação da transferência” (LACAN, 1964/2008, p. 259). Com certeza, liquida-se o engano do sujeito suposto saber, mas não o inconsciente e, portanto, também não se liquida a atualização do encontro faltoso que ele enceta. É nisso que a transferência se mantém enquanto atualização da realidade sexual do inconsciente, mas de um modo singularizado, com a escrita das coordenadas que inscrevem para cada um aquilo que “submete a relação sexual para o ser falante a ser somente o regime do encontro” (LACAN, 1972-73/2008, p. 101).
Contingencialmente, pode-se experimentar aí a apresentação do real de maneira que seja possível ler seus efeitos. Efeitos que se deduzem em termos de afeto, de espanto, de surpresa. Uma marca de gozo que é também marca de um saber adquirido, um saber que não se esquece, pois foi saboreado. Para alguns, essa experiência leva a um desejo que toma a psicanálise como causa. Desejo de que ela persista no mundo e de oferecer-se para ocupar esse lugar ao qual se dirige o amor de transferência (mesmo sabendo a que ele está fadado), para que seus efeitos possam ser experimentados por outros.
Uma vez que se pode assumir a causa, lá onde isso era, esse lugar pode ser revisitado de outra maneira, não mais como empuxo ao falatório do amor de transferência, mas como aquilo que Lacan chamou na nota italiana de “um amor mais digno”. Mais digno, porque deixa de demandar, deixa de alojar no outro a responsabilidade, a habilidade de responder diante do encontro faltoso, e se encarrega de inventar algo desse saber que se produz na hiância.
Há um dito popular que diz “o amor não desaparece, ele muda de lugar”. A Escola é o lugar que Lacan propôs para a experimentação desse amor mais digno. Não só porque é um espaço de trocas e laços, mas especialmente porque funciona como uma espécie de catalizador dessa mobilização de um saber que inclui o encontro faltoso e toca o real. É isso que está em jogo nos dispositivos do cartel e do passe, permitindo que se faça a prova da experiência e se transmita algo dela de um modo que anima todo um trabalho em comunidade.
Que o encontro da EPFCL-Brasil deste ano, primeiro em que esperamos poder voltar a nos encontrar com o corpo depois de tudo que atravessamos, seja eutychia e que possamos fazer dele um momento à altura da dignidade que nossa orientação para a Escola requer.
Coordenação Comissão Científica:
Sonia Alberti
Coordenação local:
Cléa Ballão
Cláudia Leone
Cláudia Valente
Fernanda Histher
Glauco Machado (coordenador)
Nadir Lara Júnior
Robson Mello
Thamy Soavinsky
Coordenação Nacional: CG da EPFCL-Brasil:
Robson Mello – diretor
Julie Travassos – secretária
Juliana Costa – tesoureira
Equipe de Prelúdios:
Glória Sadala
Zilda Machado