XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio V
A amnésia do céu azul e o gozo da paixão da ignorância
Joseane Garcia
Como um tsunâmi, as chuvas de fevereiro e março deste ano devastaram a cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro: 241 pessoas foram mortas, 3 ficaram desaparecidas, sem contar as milhares de pessoas que ficaram desabrigadas ou dasalojadas. Há informações de que a primeira enchente da cidade ocorreu em 1834. Dom Pedro II escreveu, em seu diário de viagens, datado de 5 de janeiro de 1862: “Ontem de noite houve grande enchente. Subiu três palmos acima da parte da Rua do Imperador do lado da Renânia; acordou o Câmara (sic), e um homem caiu no canal, devendo a vida a saber nadar e aos socorros que lhe prestaram. Conversei hoje com o engenheiro do distrito; pouco se fez do ano passado para cá. Os estragos que fez a enchente levaram dois meses a reparar, segundo me disse o engenheiro” [1]. Pouco se fez da época do império para cá! Tal qual a tragédia grega, a tragédia petropolitana denuncia que o trágico é consequência do humano. Nos últimos 11 anos, tempo que separa as duas maiores tragédias na região serrana do Rio de Janeiro, nenhum dos governantes (Município, Estado ou União), que estiveram no comando durante esse período, colocaram em prática algo que pudesse evitar essa última tragédia. Ações políticas deveriam ser tomadas, no entanto, parou de chover, as políticas são esquecidas. É o que ficou conhecido na cidade de Petrópolis como “amnésia do céu azul” [2]. O céu fica azul e se esquece de fazer a política pública que é necessária: construir habitações de interesse social, fazer obras de contenção de encosta, reflorestamento, tirar pessoas das margens dos rios e de terrenos instáveis.
A amnésia do céu azul é a expressão da paixão da ignorância na cidade de Pedro. Além do amor e do ódio, Lacan enumerou a ignorância como paixão do ser. Diz ele: “A ignorância, de fato, não deve ser entendida aqui como uma ausência de saber, mas tal como o amor e o ódio, como uma paixão do ser: porque ela pode ser, à semelhança deles, uma via em que o ser se forma” [3].
Lacan introduz a paixão da ignorância na via da busca da verdade pelo sujeito. O sujeito, no início da análise, está na posição de sujeito que ignora, possibilitando uma abertura para a transferência. Do lado do analista, a ignorância é concebida enquanto “ignorância douta, que não quer dizer sábia, mas formal, e que pode ser, para o sujeito, formadora” [4]. O analista deve ignorar o que ele sabe. Nessa correlação entre ignorância e saber, é o analisante que situa o analista na posição de sujeito-suposto-saber.
Portanto, inicialmente, a paixão da ignorância foi tomada por Lacan como primeiro tempo de abertura à transferência e no sentido da “douta ignorância”. No Seminário Mais, ainda, Lacan [5] retoma o amor, o ódio e a ignorância em um novo contexto. As paixões não se organizam mais com relação ao ser, pois este sofre um deslocamento a partir do conceito de gozo. As paixões passam a se articular entre saber e gozo.
A cidade imperial sempre sofreu com as chuvas devido à sua topografia. No entanto, as ocupações irregulares em encostas e em áreas de proteção são fatores que se somam ao impacto dos eventos climáticos. Diversos fatores contribuem para a informalidade urbanística. Um dos principais, é a baixa renda desses moradores informais que impossibilita estabelecer um aluguel formal ou comprar alguma moradia decente, porque além dos impostos, tem também o laudêmio [6] para pagar.
Enquanto escrevia esse Prelúdio, uma tragédia semelhante acabava de acontecer na Grande Recife, Pernambuco. Jardim Monte Verde, o local mais afetado e onde houve o maior número de mortos, fica entre Recife e Jaboatão dos Guararapes. Jardim Verde foi ignorada pelos governos. A comunidade reclama que nunca teve atenção de nenhuma das prefeituras, elas brigam jogando uma para a outra a responsabilidade de gestão.
A necropolítica de Mbembe [7] descreve bem como, nas sociedades capitalistas, instituições como governos promovem políticas que restringem o acesso de certas populações a condições mínimas de sobrevivência. Criam regiões onde a vida é precária e onde a morte é autorizada, definindo quem deve viver e quais devem morrer. Mbembe se refere, principalmente, aos refugiados e colonizados, e aqui estendo aos desabrigados e desajolados. Há um propósito do capitalismo nisso que vem com a paixão da ignorância. Pela via do silêncio, apagando a memória da tragédia, a amnésia do céu azul, com o gozo da ignorância, é mais uma necrofilia do poder.
A psicanálise acredita que tratando o gozo da ignorância com o desejo de saber, pode-se criar algo novo. Essa é a nossa aposta e nossa política!
Bom encontro para todxs!!
[1] Arquivos do Museu Imperial.
[2] Expressão cunhada pelo geólogo Marcelo Motta da PUC-Rio.
[3] LACAN, Jacques. Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 360.
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 317.
[5] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[6] Conhecido por Taxa do Príncipe. Em Petrópolis, o laudêmio é cobrado por transações de terras na região em que ficava a Fazenda Córrego Seco, pertencente a Dom Pedro II.
[7] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
Coordenação local:
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