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XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR


Prelúdio VI
Amor, ódio e ignorância: as paixões do ser
Robson Mello

As massas organizadas nos oferecem situações privilegiadas para refletirmos acerca das paixões do ser: o amor, o ódio e a ignorância.

Freud tomou como referência principal para escrever seu texto “Psicologia das massas e análise do eu” (1921) o estudioso francês Gustave Le Bon (1841-1931) cujo interesse incluía a psicologia, a sociologia, a antropologia, a medicina e a física. Em sua conhecida obra A multidão: um estudo da mente popular (1895), Le Bon destaca características que surgem nos indivíduos ao constituírem uma massa organizada: diminuição da inteligência, exacerbação das emoções, desaparecimento da vida cerebral, predominância da vida medular. O surgimento de um sentimento de poder invencível, a sugestão e o contágio mental contribuem para as mudanças do indivíduo quando pertencente a uma determinada massa. E, assim, a massa pode tornar-se tão heróica quanto criminosa.

Portanto, a massa organizada é fortemente afetada pelas paixões do ser: o amor, o ódio e a ignorância. Alberti afirma que, ao lado das paixões, há os afetos e o desejo. São três dimensões presentes na teoria psicanalítica que jamais serão totalmente exploradas, pelo fato de todas terem “um pé, ou mesmo meio corpo, no real.” (ALBERTI, 2011, s.p.). Diz Alberti:

O afeto surge como sofrimento – pathos – para o sujeito, e que na neurose é efeito da falta, na demanda endereçada ao Outro. Exatamente ali onde o sujeito quer algo do Outro, a resposta não vem e o vazio dessa resposta produz, no sujeito, um encontro com o ser que lhe causa horror (angústia) ou desânimo. O desejo é uma outra saída para o sujeito. (ALBERTI, 2001, s.p.)

A obra cinematográfica Medida Provisória, do estreante diretor Lázaro Ramos, nos permite pensar no “dom ativo do amor”, do qual Lacan nos fala já no Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-54). Diz Lacan:

Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo que constitui no plano simbólico. O amor, o amor daquele que deseja ser amado, é essencialmente uma tentativa de capturar o outro em si mesmo, em si mesmo como objeto […] o dom ativo do amor visa o outro, não na sua especificidade, mas no seu ser.
O amor, não mais como paixão, mas como dom ativo, visa sempre, para além da cativação imaginária, o ser do sujeito amado, a sua particularidade. É por isso que pode aceitar dele até muito longe as fraquezas e os rodeios, pode mesmo admitir os erros, mas há um ponto em que para, um ponto que só se situa a partir do ser – quando o ser amado vai muito longe na traição de si mesmo e persevera na tapeação de si, o amor não segue mais. (LACAN, 1953-54/1986, p. 314-315).

E, em relação ao ódio, é a mesma coisa. Em sua dimensão imaginária, enquadrada pela relação simbólica, o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do outro. Ao contrário do amor que visa o desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer seu rebaixamento. Ambos são carreiras sem limite.

Lacan afirma que somos uma civilização do ódio: “O ódio se reveste no nosso discurso comum de muitos pretextos, encontra racionalizações extraordinariamente fáceis. Talvez seja esse estado de floculação difusa do ódio que satura em nós o apelo à destruição do ser.” (LACAN, 1953-54/1986, p. 316).

A nosso ver, a dimensão do amor vivida pelo casal Capitu (Taís Araújo) e Antonio (Alfred Enoch) do filme Medida Provisória corresponde a um amor que suporta as diferenças e o prolongado silêncio imposto pelas violentas opressões institucionais.

Trata-se de um amor que reconhece a castração, sem pretender velá-la, nem contorná-la. É um amor solidário à diferença absoluta entre as partes que compõem o casal e que expõe a força de Eros diante da vertente destrutiva da pulsão de morte.

Por outro lado, Isabel, interpretada por Adriana Esteves, alta funcionária federal e agente executora da medida provisória, nos apresenta as muitas facetas e sutilezas do ódio, corroborando a proposição lacaniana sobre o que visa esta paixão: o rebaixamento do ser do outro, a sua desorientação, o seu desvio, o seu delírio, a sua negação detalhada, a sua subversão (LACAN, 1953-54/1986, p. 316).

O ódio é o que mais se aproxima do ser, o qual é nomeado por Lacan de ex-sistir. Para ele, “nada concentra mais ódio do que esse dizer onde se situa a ex-sistência.” (LACAN, 1972-73/1985, p. 164). A dimensão da ignorância se faz presente, quando o sujeito se situa na pesquisa da verdade, não importa que o saiba ou não. Afirma Lacan: “Acabei de dizer que a ignorância é uma paixão. Para mim, isso não é uma menos-valia, nem tampouco um déficit. É outra coisa. A ignorância está ligada ao saber. É uma maneira de estabelecer o saber, de fazer dele um saber estabelecido” (LACAN, 1971/2001, p. 11). Nesta conferência, intitulada “Saber, ignorância, verdade e gozo”, Lacan retoma o que ele dissera no texto “Variantes do tratamento padrão”, referindo-se à ignorância “como a paixão que deve dar sentido a toda formação analítica” (1955/1998, p. 360).

No filme, encontramos Dona Izildinha, personagem interpretada por Renata Sorrah, cujo discurso aponta para a paixão da ignorância – esse não querer saber de nada. Em certo momento, D. Izildinha diz: “Também já sofri racismo por causa do meu cabelo”. E, noutro momento: “Graças a Deus eu não me encaixo em nenhum perfil de melanina”.

No entanto, é a dimensão da ignorância que constitui uma das aberturas para a transferência no trabalho analítico. Na posição de se confessar através da palavra e procurar sua verdade no analista, o analisante se engana, fala como um ignorante sem saber, mas a via do erro é a precursora do bem-dizer. Desse modo, abre as vias do amor que acolhe o dizer onde se situa a ex-sistência, mostrando a força da psicanálise enquanto erotologia, que faz furo no discurso do ódio, este que, com frequência, faz mover as massas fascinadas, identificadas e contaminadas por seus líderes.

A ideologia das massas e seus afetos habituais! Isso é o que brilhantemente encontramos na distopia proposta pelo diretor Lázaro Ramos, o qual comentou, em recente entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura: “dadas as condições atuais do Brasil, o filme, infelizmente, ficou parecendo mais real do que queríamos.”

Medida Provisória é obra obrigatória para refletirmos sobre a temática do racismo estrutural, estruturante e inconsciente que assola o Brasil e demais nações que se estabeleceram sobre as matrizes da política colonialista, deixando para trás um longo rastro de desigualdades, exclusões e infinitas mortes. E, não menos, obra fundamental para ilustrarmos com a arte cinematográfica as formulações de Freud e Lacan sobre as paixões do ser.

Desejo um bom XXII Encontro Nacional a todos nós. Até daqui a pouco!!!

 

Referências:
Alberti, S. As paixões do ser a partir de um caso freudiano. Extraído de: e-publicacoes.uerj.br. Acesso: 28 de abril de 2022.

Askofaré, S. Aspectos da segregação. A peste, São Paulo, v.1, n.2, p.345-354, jul./dez.2009.

Freud, S. (1921). Psicología de las masas e análisis del yo. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2010.

Lacan, J. (1953-54). Seminário livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

Lacan, J. (1555). “Variantes do tratamento padrão”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Lacan, J. (1964/1988). Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

Lacan, J. (1971). Saber, ignorância, verdade e gozo. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Lacan, J. (1972-73). Seminário livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Lacan, J. (1973). Televisão. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Le Bon, G. Psicologia das multidões. Tradução: Ivone Moura Delraux. Edições Roger Delraux. Digital Source, 1980.

Soler, C. Outros afetos. São Paulo: Aller, 2022.

Coordenação local:
Cléa Ballão
Cláudia Leone
Cláudia Valente
Fernanda Histher
Glauco Machado (coordenador)
Nadir Lara Júnior
Robson Mello
Thamy Soavinsky

Comissão Científica:
Adriana Grosman
Bárbara Guatimosim
Felipe Grillo
Ida Freitas
Leila Equi
Terezinha Saffi
Glauco Machado
Sonia Alberti (coordenadora)

Equipe de Prelúdios:
Gloria Sadala
Zilda Machado

Coordenação Nacional: CG da EPFCL-Brasil:
Robson Mello – diretor
Julie Travassos – secretária
Juliana Costa – tesoureira

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