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XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR


Prelúdio IX
Um mais um é sempre mais que dois [1]
Vera Pollo

Consultados que fomos, um a um, enquanto membros da EPFCL-Brasil, e movidos pelo que vivemos no atual momento, chegamos a uma decisão coletiva: vamos discutir as paixões do ser, vamos falar de amor, de ódio e, também, da paixão pela ignorância, conforme a série proposta por Lacan (1973), em Televisão, logo no início de sua fala.

Não há dúvida de que vivemos dias nefastos, em que somos frequentemente tomados pela indignação e pelo desalento, e parece difícil abordar um afeto alegre, até mesmo um afeto terno. Mas, como expressou recentemente nosso querido poeta Chico Buarque em alguns versos de seu magistral “Que tal um samba?”, quem sabe a música, não é mesmo, quem sabe ela nos permita “remediar o estrago” e “esconjurar a ignorância”.

Ora, não passou despercebido a Freud[2] que a arte seja ela própria um remédio, e que seu efeito levemente tóxico propicie um antídoto contra o mal-estar. Mas é seu caráter de ato que aqui nos interessa, uma vez que nos remete aos anos de chumbo que marcaram nossa história, por aproximadamente três décadas. A música, como toda manifestação artística, pode ter um efeito catártico, em seu sentido mais rigoroso, que não é o de suprimir nenhum afeto, e sim o de aguçar nossa sensibilidade à compaixão e ao temor. Com… pai… chão… com… paixão… afasta de mim esse cale-se de vinho tinto de sangue! soletra lalíngua que é nossa.

O cinema é outra manifestação artística de efeitos semelhantes. Vale a pena assistir “Árvores da Paz”, filme recentemente dirigido por Allana Brown[3]. Ele se passa em Ruanda, em 1994, por ocasião do genocídio que matou quase um milhão de pessoas, logo depois da morte de dois presidentes africanos. Ruanda era ocupada por duas etnias, uma favorável à monarquia e bem menos numerosa, os tutsis, outra contrária à monarquia e bem mais numerosa, os hutus. Vizinhas e amigas até aquele momento, as duas etnias se tornaram subitamente inimigas e as pessoas passaram a matar seus antigos amigos da forma mais cruel possível: torturas físicas, assassinatos até mesmo de crianças, estupros coletivos. Os jovens hutus eram transformados em milicianos e recebiam listas com nomes dos opositores políticos a serem exterminados. Durante essa guerra fratricida de oitenta dias, quatro mulheres de diferentes origens – uma hutu grávida, uma tutsi, uma freira e uma jovem norte-americana voluntária de um programa de ajuda – ficaram escondidas em um sótão minúsculo, com um mínimo de comida e de água, ocasionalmente trazidas pelo marido da mulher grávida. Como se isso não bastasse, de onde elas estavam, podiam ouvir os gritos dos que eram presos e mortos. Uma prova de solidariedade e compaixão, é o mínimo que se pode dizer dessa convivência, e o fato é que nenhuma delas morreu durante esse período graças exclusivamente à força do desejo que as unia. Baseado em fatos reais, o filme encerra com a afirmação de que Ruanda é hoje o país que tem o maior número de mulheres ocupando cargos governamentais. Contudo, está longe de ser considerado um exemplo de democracia e de respeito aos direitos humanos. Ainda assim, uma questão se pode levantar: o evento descrito pelo filme não foi um exemplo de que nem todo amor é narcísico?

Sob a pena de Freud (1914)[4], a teoria psicanalítica começa por distinguir entre o amor narcísico e o ana(c)lítico, mas, logo em seguida[5], se depara com a gramática das pulsões, demonstrando que há três formas de contrariar a demanda de amor: o ódio, a indiferença, e a simples troca de voz do verbo, passando da voz passiva para a ativa, do lugar de objeto amado à posição de amante. Nos termos de Lacan (1960)[6], o que acontece nesta inversão do verbo é justamente o “milagre da transferência”, tal qual Platão o descrevera em seu Banquete, durante o qual Sócrates irá dizer que é Diotima, a sábia adivinha, quem fala por sua boca, para dizer que Eros, filho de Poros e Pênia, não pode ser um deus, pois “como pode ser um deus um ente desprovido de coisas boas e belas?” (Platão, 1956, p.25).[7] Comemorava-se a premiação de Agatão, como o maior poeta trágico.

Foi, todavia, não um trágico, mas um poeta cômico, Aristófanes, quem, na Grécia Antiga, ao escrever a peça Assembleia das Mulheres[8], idealizou o que fariam as mulheres se tomassem o poder. O poeta construiu a cena em que as mulheres atenienses, travestidas de homens, ocupariam o congresso pela madrugada, para redigir um novo Código. O Estado deveria alimentar, prover moradia e tomar conta de cada ateniense. Cada homem se deitaria com qualquer mulher de sua escolha, desde que se deitasse primeiro com uma mulher mais feia e bem mais velha do que a escolhida. A propriedade privada seria abolida e se implantaria na Grécia um primeiro e bem-sucedido comunismo.

Se Aristófanes nos faz rir, é que o amor, aliando-se ao desejo e, consequentemente, à falta, é sobretudo um afeto tragicômico. Mais do que isso, a peça teatral também demonstra que “não há relação/proporção sexual que se possa escrever”, o que não nos impede, antes facilita, que se inventem palavras e atos de amor. “Falar de amor é poesia” (Lacan, 1972-73)[9], e nem todo ato é “perversão polimorfa de macho”. Pois o filme “Árvores da Paz”, assim como a comédia de Aristófanes, remetem-nos ambos à diferença, trabalhada por Lacan (1964) em um dos capítulos finais de O Seminário, livro 11[10], entre a soma e a reunião. Lançando mão dos círculos de Euler, para produzir a interseção dos dois conjuntos do Ser e do Sentido, Lacan comenta que, no vel lógico da operação de alienação não se contam os elementos que se localizam na interseção dos dois conjuntos, pois esta interseção corresponde exatamente ao non sense em que se funda o inconsciente, em seu estatuto de hiância entre o sujeito e o Outro. Logo, a alienação reúne, mas não soma.

A separação tampouco soma, já que corresponde justamente à divisão que o objeto causa promove no sujeito e o singulariza. Talvez possamos conceber um amor que some, assim como propõe Aílton Krenak[11], autor de vários livros, dentre eles, de “A vida não é útil”, no qual podemos ler a frase que usei como epígrafe: “Um mais um é sempre mais que dois”. Então, que sejamos muitos, para que possamos rir e enfrentar o discurso do mestre sempre agenciado pelo imperativo do Um, que pode ser inclusive a morte, com nosso discurso de analistas, em que 4+1 já significa mais do que cinco.

Então, que sejamos muitos, para que possamos rir e enfrentar o discurso do mestre sempre agenciado pelo imperativo do Um, que pode ser inclusive a morte, com nosso discurso de analistas, em que 4+1 já significa mais do que cinco.

Resto a concluir as observações finais de Lacan no Seminário 11o desejo do analista pode levar à diferença absoluta, e esta pode fazer surgir a significação de um amor sem limites, fora da lei. Amor do objeto a? Em ti, mais do que tu.

 

Rio de Janeiro, 26 de junho de 2022.

 

[1] Frase de Aílton Krenak.
[2] Freud, S. (1929) O mal-estar na cultura.
[3] Este filme pode ser visto no Netflix.
[4] Freud, S. (1914) Para introduzir o narcisismo.
[5] Freud, S. (1915) As pulsões e seus destinos.
[6] Lacan, J. (1960-61) O Seminário, livro 8: a transferência.
[7] Platão. O banquete. São Paulo: Cultrix, 1956.
[8] Também traduzida como “As Mulheres na Assembleia” ou até “A Revolução das Mulheres”, essa comédia foi encenada pela primeira vez em Atenas, em 392 a.C.
[9] Lacan, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda.
[10] Lacan, J (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
[11] Líder indígena e ativista ambientalista, autor também de “O amanhã não está à venda”, “Ideias para adiar o fim do mundo” e outros livros, os quais têm sido traduzidos em várias línguas.

 

Coordenação local:
Cléa Ballão
Cláudia Leone
Cláudia Valente
Fernanda Histher
Glauco Machado (coordenador)
Nadir Lara Júnior
Robson Mello
Thamy Soavinsky

Comissão Científica:
Adriana Grosman
Bárbara Guatimosim
Felipe Grillo
Ida Freitas
Leila Equi
Terezinha Saffi
Glauco Machado
Sonia Alberti (coordenadora)

Equipe de Prelúdios:
Gloria Sadala
Zilda Machado

Coordenação Nacional: CG da EPFCL-Brasil:
Robson Mello – diretor
Julie Travassos – secretária
Juliana Costa – tesoureira

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