XXIV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos
10, 11, 12 e 13 de outubro de 2024 – Brasília/DF
Prelúdio III
Criança generalizada e criança agramática
Maria Claudia Formigoni
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros)
Vivemos em uma época em que as particularidades de gozo não se contam e, portanto, não são tomadas como medida ética. As manifestações singulares são tidas como anomalias, desvios a serem corrigidos, dissidências, tendo isso inclusive um alcance social e político (Soler, 2015).
Nesse cenário, predomina então o apagamento das diferenças, a anulação das subjetividades. A estreita aliança entre o discurso da ciência e o discurso capitalista é responsável pela universalização e homogeneização dos indivíduos, deixando de fora a singularidade e reduzindo-os a objetos. Na conjuntura atual, somos todos objetos.
Vivemos na era da “criança generalizada” (Lacan, 1967/2003, p. 367) e, não por acaso, questões relativas à infância estão tão presentes. Escutamos na clínica e na cidade dos discursos diversas formas de violência contra a criança – medicar, adaptar, silenciar, prevenir, oprimir e, até mesmo, exterminar…
As crianças têm a capacidade de transformar, de romper com os universais, de resistir à segregação, de abalar as supostas certezas dos adultos. As infâncias, e cada criança, incomodam, bagunçam, fazem barulho porque tocam no que há de mais particular no gozo de cada um, e, como afirma Sonia Alberti em seu prelúdio, personificam a liberdade de gozo.
O que pode um analista frente a esse aniquilamento das singularidades que afeta também as crianças e as infâncias?
Pode sustentar a psicanálise e apostar no inconsciente.
Como afirma Marie-Jean Sauret (1997, p. 44, grifo nosso), “a criança encontra na psicanálise um meio eficaz para lutar contra os efeitos nefastos que dominam o campo social. Isso parece menos negligenciável quando em relação ao Outro da ciência somos todos objetos. Essa constatação confere à psicanálise com crianças – à psicanálise simplesmente – uma aposta política”.
Se, como afirmara Lacan, o inconsciente é a política e se, segundo Freud, o inconsciente é o infantil, podemos dizer que sustentar a psicanálise é sustentar uma política do infantil. É dar lugar ao que “há de gozo ineliminável, irredutível, que o sujeito deve ao fato, se não de falar, pelo menos de consentir no significante” (Sauret, 1997, p. 21). Traço que fica recalcado, mas que marca, de modo único, a cada ser falante.
A psicanálise promove então a afirmação da diferença absoluta, a sustentação das singularidades no mundo. Abre espaço para as diferenças de gozo e oferece a possibilidade de que o sujeito se separe das amarras do Outro, dando margem de liberdade ao desejo de cada um. A ética da psicanálise é, portanto, antissegregativa e antidominante.
O atravessamento de uma análise permite uma separação do Outro. Oferece a possibilidade de poder gozar da própria singularidade. Trata-se de “uma outra liberdade, a de que isso se diga, de modo que, independente da idade, o sujeito tenha a possibilidade de dizê-lo de outro modo” (Alberti, 2024). Podemos, a partir de uma outra relação com o inconsciente, dizer de modo mais livre, menos fixado a certo discurso e a certas normas.
Podemos, por que não, ficar mais criança na vida. As crianças, assim como os poetas, preservam algo dessa liberdade. São menos alfabestas, têm uma relação menos presa com a linguagem. Por isso, a distorcem, brincam com as palavras, alteram a gramática. Há nas crianças uma bobagem linguageira que, muitas vezes, provoca riso e surpresa, justamente por romper com o estabelecido e (d)enunciar.
Assim, sustentar a psicanálise é oferecer a oportunidade de que uma análise possa ser para um sujeito a possibilidade de o “verbo pegar delírio”. É apostar que a criança agramática faça resistência à criança generalizada, sustentado a alegria de estar à margem.
Referências bibliográficas
Alberti, S. (2024). 1º prelúdio ao XXIV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil.
Barros, M. (1993). O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, p. 17.
Soler, C. (2015). Lo que queda de la infancia. Buenos Aires: Letra Viva, 2015.
Lacan, J. (1967). Alocução sobre as psicoses da criança. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 359- 368.
Sauret, M. J. (1997). O infantil & a estrutura. São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 1997.