XXIV ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
A criança generalizada na clínica e na cidade dos discursos
10, 11, 12 e 13 de outubro de 2024 – Brasília/DF
Prelúdio IV
Da criança generalizada às margens da alegria
Valdelice Nascimento de França
“Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume.
Sim, o vaga-lume, sim, era lindo!
– tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se.
Era, outra vez em quando, a Alegria.”
(Guimarães Rosa)
É com grande alegria que Brasília recebe pela primeira vez o Encontro Nacional da nossa Escola. Fruto do trabalho e entusiasmo de um Fórum, orientado pela sua Escola, que cresce na capital do nosso país, lugar no qual emanam as decisões políticas da nação.
Aprofundando um pouco mais sobre a história de Brasília, entendemos que esse “quadrado” criado em 1960, no estado de Goiás, traz consigo muitas histórias de resistência, desde a sua construção. A nova cidade trouxe o conceito de Estado Moderno, com a tentativa de redefinir a identidade nacional, no gesto de fundação de uma nova nação coesa e progressista, a qual serviria para alimentar a ideia de um espaço vazio plantado na aridez do cerrado brasileiro (Pedrosa, 1997). Os pioneiros que aqui vieram construí-la e trabalhar passaram a ser chamados de candangos e seus filhos de candanguinhos.
É sobre os candanguinhos que Guimarães Rosa nos suscita importantes discussões políticas, sociais e psicanalíticas em seu conto “As margens da alegria”. Neste conto, em que o menino viaja com os tios para onde seria erguida “a grande cidade”, a criança é motivada pela satisfação da descoberta das coisas novas: “a satisfação antes da consciência das necessidades” (Rosa, 2001, p.1). Ao primeiro contato com o lugar, tudo parecia mágico e novo.
Enquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapa-dão: a mágica monotonia, os diluídos ares. (…) O Menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas coisas – o que para seus olhos se pronunciava (Rosa, 2001, p.3).
No decorrer do conto, tudo era, aos olhos do menino, novidade. Ele avista um peru imperial e se deslumbra. A ave não sai mais de sua memória e ele segue no cotidiano com o animal a ciscar imaginariamente os seus olhos. O conto conduz o leitor ao passeio lúdico pela cidade-canteiro-de-obras, explorando, através da narrativa, toda fauna e flora do cerrado. Mas, tanta fantasia e encantamento durou pouco. Seus tios mataram o peru para o jantar. Uma outra realidade, senão a sua, havia invadido a inocência do menino, “o menino recebia em si um miligrama de morte” (Rosa, 2001, p.4). O encontro com a castração faz com que o menino enxergue a cidade de outra forma. Tudo agora fica diferente, ele não é mais o mesmo, “tudo perdia a eternidade e a certeza” (Rosa 2001, p.4).
Como propõe Lacan (1967/2003), em Alocução sobre as psicoses da criança, que há limite na liberdade do homem. Guimarães Rosa já havia enxergado isto colocando a sociedade brasileira da década de 60 para pensar o que realmente significava a construção monumental de Brasília, a utopia da cidade moderna. Ou seja, A margem da alegria é o lugar onde o progresso e a liberdade conviviam com o medo e a instabilidade. O sujeito moderno, que se construía ideologicamente com a construção de uma nova cidade, é uma falácia.
Hoje, 64 anos depois, qual discurso opera nesta cidade? Não podemos negligenciar que por aqui o rumo da nação foi decidido nessas últimas décadas e recentemente temos sido surpreendidos por projetos de lei cada vez mais esdrúxulos, como o PL 1904/24, o qual visa alterar o Código Penal para equiparar o aborto ao homicídio quando realizado após a 22ª semana de gestação, mesmo em caso de estupro. No campo da saúde mental, vivemos nos últimos anos o retrocesso de políticas públicas desinstitucionalizantes e antimanicomiais, como nunca visto antes. Brasília é um dos poucos entes federativos que ainda têm um hospital psiquiátrico em sua rede de saúde mental. O que podemos fazer diante de tantas políticas de morte e segregativas?
O tema da segregação, tão caro para a psicanálise, no texto de Lacan (1967/2003), articula os efeitos da universalização da ciência com os efeitos segregatórios, utilizados pelo capitalismo, os quais tornam o homem (criança e adulto) mecanismos de dominação, exploração e objeto de consumo. Frente ao discurso capitalista, que parece operar desde a construção desta bela cidade, coube ao poeta e a nós psicanalistas introduzirmos um outro discurso, o que sustenta a ética da psicanálise, o discurso analítico, da política da falta-a-ser, no qual a criança generalizada pode encontrar outras saídas, como sujeito do inconsciente frente à captura do discurso capitalista. Pois como diz Gagnebin (1997, p.180):
Ela é o signo sempre presente que a humanidade do homem não repousa somente sobre sua força e poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, mas sobre esse vazio que nossas palavras, tais como fios, num motivo de renda, não deveriam encobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a in-fância não é a humanidade completa e acabada que ela nos indica o que há de mais verdadeiro também no pensamento humano: a saber sua incompletude, isto é, a invenção do possível.
No final do conto, o menino vislumbra a alegria ao ver os vaga-lumes surgirem num lampejo de luz, de outra vez em quando. Nosso convite é para que, juntos, neste Encontro Nacional, possamos refletir, em nossa Capital, sobre as formas possíveis de transmissão e sustentação do discurso do psicanalista na pólis, para que, de outra vez em quando também “encontremos nós a alegria naquilo que constitui o nosso trabalho” (Lacan, 1967/2003, p. 367).
Referências Bibliográficas
Gagnebin, J. M. (1997). Infância e Pensamento. In: Ghiraldelli Jr., P. (Org.). Infância, escola e modernidade. Cortez, Editora da UFPR, pp. 83–100.
Lacan. J. (2003). Alocução sobre as psicoses da criança. In: Lacan, J. Outros Escritos. Zahar, pp. 359- 368 (Trabalho originalmente publicado em 1967).
Pedrosa, M. (1997). Textos escolhidos – acadêmicos e modernos. Edusp, v.3.
Rosa, J. G. (2001). As margens da alegria. In: Rosa, J. G. Primeiras estórias. Nova Fronteira.