XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR
Prelúdio X
De ódio o inferno está cheio
Andréa Brunetto
Na Divina Comédia, Dante Alighieri escreve que o inferno é o lugar de um eterno exílio, quem lá caiu não retorna. Por isso, Dante coloca o grande poeta Virgílio como seu guia nessa descida: ele guiou o herói troiano Enéas e o ajudou a voltar. Quando, no décimo compartimento do oitavo círculo, é perguntado a Virgílio quem és, ele responde: “eu sou aquele quem de círculo em círculo esse homem vivo guia.”1
O inferno é o reino do Mal e esse mal desliza metonimicamente, infinitamente. De círculo em círculo abundam os nomes que começam com Mal. São oito círculos chamados de Malebolge, as valas do mal, que significa uma grande caverna com formato de funil. E tem Maleblanche, Malacoda. E Gianciotto Malatesta que matou o irmão, Paulo Malatesta. Também, Malatestino, um tirano que mandou matar Montagna. “Todo Mal, que no céu cólera acende, injustiça há por fim, que o dono alheio, usando fraude ou violência, tende. Próprio do homem por ser da fraude o meio.”2
O Inferno é o Mal que “circunda o tormento”, é cheio de homens de poder, políticos, reis violentos, usurários, aqueles apegados ao poder e ao dinheiro. Alexandre, que Dante não marca como o grande, porque lá no Inferno não o é, que em nome de poder se movia; Felipe, o belo (esse adjetivo, ele mantém), rei da França; Papa Nicolau III; Frederico II, da Prússia, dentre outros.
Também está no Inferno, Ulisses, o viajante, que foi para o mundo e deixou o filho crescendo, o pai morrendo e a mulher esperando. Foi ver o mundo, tinha muitas ambições e queria glórias. E Jasão, outro casado com suas ambições, quem perjurou como ele, terá pena dura, escreve Dante. Medéia está vingada. Aliás, podemos nos perguntar o porquê Medéia não está no círculo dos luxuriosos, os que amavam desmedidamente. Também não está entre os vingativos, e o inferno, deles, está cheio. Dante dá até a ela esse gosto de se sentir vingada e não a coloca no inferno. Mas disso trataremos em Curitiba.
De gula, ira, ambição e mágoas, o Inferno está cheio. “Ó cega humanidade, quanta ignorância a mente vos ofende”.3 Dante salienta essa paixão do ser humano pela ignorância. Almas cheias de orgulho lá estão, que bravejam raivas possuídas, almas devoradas pela ira. Aliás, o ódio é abundante em vários cantos do Inferno. Ele circula por tudo, tornando o Inferno cheio de seres raivosos. Não tem um canto em que não apareça uma personagem afundada no ódio, irosa. Disso, o Inferno está cheio, o que justifica que Freud tenha escrito para o ódio, Lúcifer, o anjo rebelde, o que se rebelou ao pai, e de linda e brilhante criatura, se enfeiou no ódio. Aliás, o Inferno está cheio dos odiosos que se rebelaram ao pai, como Absalão, Féton, dentre outros, além de Lúcifer, claro. Dante poderia ter criado um círculo só para eles.
Para finalizar, um exemplo de um odioso, afogado em seu tormento. O Minotauro está em guarda no sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os poetas ao rio de sangue. “De Creta o monstro infame se estendia, apenas viu-nos, se mordeu fremente, como quem pela raiva é devorado”.4 Dante marca que os raivosos têm as bocas escancaradas, que o ódio vai mordendo e devorando. Também, escreve sobre algumas almas que “virão a sangue após ódio excessivo.” Mais adiante, Virgílio mostra a Dante, no pântano, as sombras: “são almas, filho meu, são os que venceram a ira. Com dentes, laceravam-se raivosas.”5 Dante marca nos odiosos a ligação da agressividade com uma oralidade, que morde, devora, sadicamente. Entendo isso que ele chamou de ódio excessivo como um imaginário louco, desvairado, sem mediação do simbólico. E o imaginário, sabemos desde O Seminário, livro 3: As psicoses (LACAN, 1955-1956), é agressivo e erótico. Uma paixão. E se não puder ser dialetizada pelo simbólico, se torna excessiva e envolve, então, morder, devorar, comer, rasgar com os dentes o outro.
Lacan afirma que basta escutar as brincadeiras e as fabulações das crianças, com suas bonecas desmanteladas, para saber dessa agressividade que toca o desmembramento do corpo. Ou então os quadros de Bosh, que são como atlas das imagens terroríficas que atormentam os homens.
Essa agressividade é a irmã-gêmea do ódio. Lacan mostra com o Estádio do espelho a intenção agressiva que reside na imago. E passa a nos explicar a agressividade imersa nos transitivismos tão comuns nas crianças pequenas. E Em O Seminário, livro 2 (1954-1955, p. 306), Lacan sustenta que não basta que tenhamos esse imaginário para que sejamos homens – é por isso que nesse seminário tem tantos exemplos do imaginário nos animais. “Podemos ser ainda essa coisa intermediária que se chama louco. Louco é justamente aquele que adere a esse imaginário, pura e simplesmente.”
Em contraposição ao ódio que pode ser louco, a aderência a um imaginário “pura e simplesmente” – o que poderíamos, com Freud, dizer pulsão de morte – lembro a todos que Lacan chamará o ódio de o sentimento mais lúcido. Louco ou lúcido? Infernal, certamente, mas diferente de Dante, apostamos, com Freud e Lacan, que dele é possível sair.
Mas repito a pergunta que só responderei em Curitiba: O ódio é louco ou lúcido? Espero todos lá.
1 Alighieri, D. A Divina Comédia. São Paulo: Atena Editora, 1957, p 151.
2 Ibid., p. 62.
3 Ibid., p. 44.
4 Alighieri, D. A Divina Comédia. Op. Cit., p 44.
5 Ibid., p. 45.
Coordenação local:
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