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XXII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
As paixões do ser: amor, ódio e ignorância
Convidada: Ana Laura Prates
04, 05 e 06 de novembro de 2022 – Curitiba – PR


Prelúdio XIV
Amor, ódio, ignorância contra as mulheres
Joseana Simone Deckmann Lima

Um olhar, o de Beatriz, ou seja, um tantinho de nada, um batimento de pálpebras e o requintado dejeto daí resultante, e eis surgido o Outro que só devemos identificar com o gozo dela, o gozo que o poeta, Dante, não pode satisfazer – já que dela só pode ter esse olhar, só esse objeto (LACAN, 1973, p. 26).

Que cada um ponha algo de si (Lacan, 1953-54, p. 15-16). Respondendo a esta convocação, vim aqui trazer um recorte, um work in progress, para falar do tema que nos movimenta neste ano. Abordarei amor, ódio e ignorância contra as mulheres, representantes, mas não as únicas, desse campo aberto não-todo fálico (Lacan, 1972-73), que vem sendo atacado de inúmeras maneiras pelo des-governo atual.

As artes retratam, em diferentes tempos, um mal-estar (sintoma) na civilização (Freud, 1930/2020) e suas vestes em cada época, como no filme A vida invisível, dirigido por Karim Aïnouz (premiado como o melhor filme estrangeiro no Festival de Cannes de 2019), baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, da pernambucana Martha Batalha. Segundo a autora, trata-se de: “um melodrama com personagens marcantes, cenários opressores e decadentes como o próprio machismo”.

O filme se passa no Rio de Janeiro, em 1950. Eurídice, 18, e Guida, 20, são irmãs inseparáveis: uma sonha se tornar pianista profissional, a outra, viver uma grande história de amor. Distanciadas por uma série de acasos, as irmãs nunca desistem de se reencontrar.

Num tempo anterior à criação da pílula anticoncepcional, a mulher ainda permanecia sem escolha, a maternidade seria o destino… Eurídice tentou evitar ter filhos, pois havia um desejo de tornar-se uma grande pianista.

Ela consegue realizar a audição e passa em primeiro lugar. É um dia de intenso entusiasmo, mas a conquista é ridicularizada pelo marido,Antenor, que indaga o que ela quer: acaso quer que eu fique em casa cuidando da nossa filha? O amor narcísico não concebe que ali haja um sujeito. Ele, indignado, pergunta: Pra que isso Nissinha? Ela responde: Quando estou tocando eu sumo. Evidencia-se um desencontro dos afetos, tal qual a alusão de Lacan à Dante Alighiere, citado na epígrafe acima.  Antenor deseja reter seu objeto (a), que escapa. Há algo na arte, um in-corpor-arte, um en corps, para além do tempo e do espaço, nestes momentos em que Eurídice entrega-se aos devaneios, a um não-ser, que a aproxima da irmã desejante.

Eurídice, aquela cujo desejo está além… sempre no horizonte, ao deparar-se com o engodo familiar ao qual foi submetida, tem um acting out, fora da linguagem, e logo após é entregue ao discurso da ciência. Permanece internada e altamente medicada para um tratamento de depressão, alienada de seu desejo. Eurídice segue obediente ao desejo do pai e do marido. Cumpriria afinal o destino traçado para as mulheres?

Guida, por outro lado, foi a irmã que escolheu a via do desejo, permaneceu à margem, sem que seu nome pudesse ser pronunciado no meio familiar, e pôs-se a escrever, mesmo sem saber se um dia as cartas chegariam ao seu destino.

Hoje, já tendo conquistado vários direitos pelos quais muitas mulheres lutaram, muito ainda falta para ser conquistado. As estatísticas apontam que o Brasil é o 5º país em feminicídio do mundo e, na pandemia, houve um incremento nas denúncias de violência doméstica. É o que assistimos diariamente nas inúmeras notícias que circulam pelas redes sociais O abuso contra a mulher acontece desde sempre, e “não cessa de se inscrever” em diferentes tipos e graus de violência: ameaças, ridicularização. Imposição de gravidez, violação da intimidade, exposição da vida íntima… em alguns casos culmina em morte. O que é preciso para romper o ciclo? Como escapar do aprisionamento?

Amor, ódio e ignorância em relação às mulheres: amor narcísico que a coloca no lugar de objeto amado e odiado; ódio ao héteros (Quinet, 2009) – aquele/a que não se deixa submeter, de todo, à lógica fálica; e ignorância, como um não querer saber nada desse gozo Outro, estrangeiro, estranho, que remeteria à falha do próprio ser, à castração do ser falante.

Admitir que há um des-encontro estrutural, onde o afeto pode “não encontrar alojamento, pelo menos não a seu gosto” (LACAN, 1973, p. 526), é levar em conta que há um sujeito desejante, há um par-lêtre (Lacan, 1975-76), quem sabe aí seja possível um amor novo, fora das amarras da neurose.

 

Referências:
FREUD, Sigmund. (1930). O mal-estar na cultura e outros escritos – Cultura, Sociedade, Religião Obras Incompletas de Sigmund Freud. Org. apresentação e notas Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares. São Paulo: Autêntica, 2020.
LACAN, Jacques. (1953-1954). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, Jacques. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, Jacques. (1973). Televisão. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
QUINET, Antonio. A estranheza da psicanálise: A Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

 

Coordenação local:
Cléa Ballão
Cláudia Leone
Cláudia Valente
Fernanda Histher
Glauco Machado (coordenador)
Nadir Lara Júnior
Robson Mello
Thamy Soavinsky

Comissão Científica:
Adriana Grosman
Bárbara Guatimosim
Felipe Grillo
Ida Freitas
Leila Equi
Terezinha Saffi
Glauco Machado
Sonia Alberti (coordenadora)

Equipe de Prelúdios:
Gloria Sadala
Zilda Machado

Coordenação Nacional: CG da EPFCL-Brasil:
Robson Mello – diretor
Julie Travassos – secretária
Juliana Costa – tesoureira

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