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Prelúdio 17 – Didier Castanet
Como fazer face aos desenlaces contemporâneos?

Para abordar sob um ponto de vista o tema do próximo Encontro Nacional da Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, intitulado « Neurose, psicose, perversão: enlaces e desenlaces », partirei de Freud, de suas constatações e da orientação que ele nos dá em 1929 no texto O Mal-estar na civilização.

Os homens “querem ser felizes e assim permanecer”, mas o Princípio do Prazer na origem dessa aspiração, fracassa em permitir que isso se realize. “O que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja « feliz » não se acha incluída no plano da ‘Criação’”. (O Mal estar na civilização p. 94/95). Eis aí a constatação de Freud no início de seu texto de 1929. O paradoxo da civilização é que ela é ao mesmo tempo a causa do mal-estar e seu tratamento. Ela trata o mal-estar regulando o gozo.

Nesse texto, sob diversas aproximações, Freud interroga o laço social. Para ele, fazendo um paralelo entre o que se desvela da subjetividade no tratamento, as modalidades psíquicas são idênticas àquelas que fundam o laço social. Podemos citar o sintoma, o amor ao pai ou ainda a identificação. Por outro lado, ele nos dá duas orientações: a visada e a ética da psicanálise.

Face à decomposição, ao esfacelamento do laço social vítima do discurso capitalista, cada estrutura vai responder à foraclusão da castração por um modo de gozo particular. A foraclusão da castração dá um aspecto psicótico ao sujeito – quer a metáfora paterna seja possível ou não. Encontramo-nos frequentemente face a sujeitos que o psicanalista não chega a diagnosticar entre neurose, psicose ou perversão, mas sujeitos que, mesmo estruturalmente neuróticos, devem se desembaraçar, em sua relação com o mundo, sem dispor da castração para escavar no Outro o buraco que eles são suscetíveis de habitar.

Essa nova forma de sintoma ou de gozo traz à tona uma questão. As mutações subjetivas de nossa época colocam um certo número de problemas técnicos. Não prometendo mais responder à questão do que é o sujeito, nem de deter o segredo de seu desejo, o saber (contemporâneo) é dessexualizado. Isso entranha uma dificuldade para mobilizar a transferência.

Uma análise conduz o sujeito até o momento de perceber o que é o gozo ineliminável.

As mutações do gozo

Abordarei esse prelúdio a partir dos efeitos do discurso capitalista sobre o sujeito, sua singularidade, sua subjetividade, me perguntando como a psicanálise e o psicanalista podem neutralizar seus efeitos.

O Campo lacaniano é o campo do Gozo e é esse gozo que se deve tratar para que o sujeito encontre seus próprios pontos de referência como ator de sua existência.

Em uma sociedade mais e mais obcecada por uma perspectiva benthamiana de cálculo, de avaliação e de repressão, guiada pela única preocupação imaginária de atingir uma segurança absoluta, a questão do lugar da psicanálise é fundamental. Em um momento onde os laços sociais se dispersam – não necessariamente se desfazem – mas se tecem sobre um modo particular de gozo, onde o sujeito não tem mais as rédeas de sua vida, a psicanálise tem aí um lugar a oferecer, e o psicanalista em sua responsabilidade do inconsciente, com seu desejo e seu ato, um lugar a ocupar.

Os filósofos, os pensadores e os moralistas foram os precursores desta mutação. Podemos citar Foucault, Althusser, Barthes ou ainda Deleuze que proclamaram não mais o direito à felicidade, mas ao gozo … que não engana. A ciência não fica nada a dever sobre este terreno, principalmente com a biologia. Mas, sabemos com o ensino de Lacan, que o gozo não faz laço. Para que haja laço é necessário que haja perda de gozo.

Da falta de limite ao transbordamento do gozo

O sujeito, logicamente, protesta contra sua inclusão em uma massa que ameaça sua singularidade. Sabemos que por estrutura o singular e o social são ligados. Com efeito, o que especifica o sujeito, a linguagem, exige uma perda, aquela do gozo absoluto. Ao entrar no campo da fala o sujeito se exclui do gozo absoluto e se encontra assim marcado por uma negatividade. Ele será marcado por uma insatisfação inevitável, com uma decepção irredutível. Esta perda, esse menos-de-gozar, fundará sua relação ao desejo e à lei.

Na sociedade contemporânea, a linha de solidariedade entre o singular e o social é recolocada em causa. Podemos justamente imputar isso ao desaparecimento do limite, mas também à necessidade do menos-de-gozar que sustenta nossa sociedade atual. As consequências disso são encontradas na não legitimação daqueles que estão no lugar de transmitir as condições do desejo (pais, professores, políticos) e do lado dos jovens, na procura de experiências limites, por exemplo.

Todo um trabalho está por ser feito para demonstrar os modos de resistência do sujeito contemporâneo ao laço social capitalista. Devido à desqualificação das figuras de autoridade, o sujeito se debate entre a afirmação de seu narcisismo e a luta para ser ele mesmo. Inúmeras de suas patologias são evidentemente patologias do consumo: do que se consome e de ser consumido por isso. Anorexia, bulimia, alcoolismo e outras adições. Por falta de recursos do Édipo e da castração, a escolha do sexo, a relação ao gozo e de maneira mais ampla, o recurso à simbolização e a dimensão do ato ficam comprometidos (passagem ao ato violento, suicídio).

É importante então identificar as desventuras do laço social contemporâneo em função das soluções inventadas pelo sujeito para tentar aí restaurar as condições de sua existência. Seria necessário distinguir as soluções que privilegiam o Simbólico (a linguagem e uma certa organização do saber), daquelas que privilegiam o Imaginário (o semelhante, a uniformidade), das que privilegiam enfim o Real (o gozo extremo).

Um laço para enfrentar os desenlaces

O sintoma coloca uma questão. Se o sujeito se agarra ao seu sintoma apesar do sofrimento que este provoca, é porque ele aí goza. O sintoma encobre um desejo que porta sobre um não sabido, mesmo sob a égide da repetição, “encontro malogrado com o Real”. Então, por que apresentá-lo a um psicanalista? É porque esse gozo é também, e ao mesmo tempo, doloroso e enigmático para o sujeito. Ele coloca em fracasso o seu saber mais íntimo sobre aquilo que ele é, aquele de sua fantasia.

A psicanálise torna o sujeito responsável por aquilo que ele diz. Ela o conduz a enunciar e a aceitar as palavras com as quais se constituiu. E também leva o sujeito a construir a fantasia com a qual ele organiza sua relação com o mundo. O mais frequentemente o trabalho da análise se inicia a partir do fracasso das soluções com as quais o sujeito tentava sustentar seu laço ao gozo, cuja falta é constitutiva do advento do sintoma. O que quer dizer que a solução do sujeito é o sintoma quando ele não pode mais sustentar sua relação de gozo.

O sintoma é assim a solução que se apresenta a cada um para alojar sua singularidade. Há um texto de Lacan que trata fundamentalmente da questão do sintoma: a “Conferência de Genebra sobre o sintoma”. (Le Bloc-Notes de la psychanalyse, n°5, Genève, 1985, p.12). Cada vez mais a orientação de Lacan será de privilegiar a dimensão da letra e a função da escrita em psicanálise. Ele utilizará a metáfora do ravinamento, dizendo que a letra se apresenta no real como um ravinamento. Ele dirá precisamente: “A escrita é no real o ravinamento do significado” (Lacan, Seminário De um discurso que não seria do semblante, p. 114). A ser entendido como os efeitos de sentido que a linguagem aí inscreve, ou ainda, que a escrita decalca não o significante, mas seus efeitos de língua. Ainda na “Conferência de Genebra sobre o sintoma” Lacan nos diz:

“É absolutamente certo que é pelo modo como alíngua foi falada e também ouvida por fulano ou beltrano, em sua particularidade, que alguma coisa em seguida reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeços, em toda espécie de modos de dizer. É, se me permitem empregar pela primeira vez esse termo, nesse motérialisme que reside a tomada do inconsciente – quero dizer que o que faz com que cada um não tenha encontrado outras maneiras de se sustentar a não ser o que há pouco denominei “o sintoma”. (Lacan, 1975)

Isso nos indica a articulação dos primeiros encontros com a constituição dos sintomas, o que Lacan denomina a maneira pela qual cada um encontra de se “sustentar”, ou seja, de se situar como sujeito face à irrupção de uma realidade sexual enigmática e de sua coalescência com a linguagem.

Parece-me então que a verdadeira questão é a da possibilidade da psicanálise se manter presente nesse laço social e de reencontrar aquilo que Lacan nomeia “a subjetividade de nossa época” e que Freud já identificava como uma manobra do Eu (Moi) afim de evitar que isso vá ainda pior.

Se o sintoma até aí era uma solução para o sujeito, como, em nossos dias, a psicanálise pode ser um meio para possibilitar o enlace com o “efeito revolucionário do sintoma”? A resposta do analista ao dizer do sintoma do analisante vai depender de seu modo de entrar em ressonância, de “domesticá-lo”, ou seja, de consoar com esse dizer. A interpretação não visa a provocação nem o conflito com o sintoma, pois ambos, “o sintoma e essa sorte de intervenção do analista – parece-me que isso é o mínimo que podemos avançar – são da mesma ordem” (Lacan, « Conférence et entretiens… », Scilicet, n°6-7, Paris, Le Seuil, 1976, p. 46). Depois, na página 50 do mesmo texto, ele continua: “a interpretação deve sempre – para o analista – levar em conta que, no que é dito, há o sonoro, e esse sonoro deve consoar com o que é do inconsciente”. Com o efeito de sentido da interpretação trata-se, para o analista, de não soltar a corda do Real, ou seja, aquela do sintoma, na maneira pela qual ele responde ao dizer do sintoma. Essa distinção coloca o analista em posição de retornar à marca sonora, de encontrar a cifra que o sintoma escreve selvagemente. Purificando o sentido que veicula o significante pela jaculação (ver o seminário R.S.I) que se presta ao equívoco, é o efeito de sentido em seu real que é visado. Isso não é apreensível senão com o nó borromeano, pois ele demonstra que uma intervenção sobre uma consistência tem um efeito sobre as duas outras consistências, ou uma intervenção em um cruzamento de duas consistências tem efeito sobre a terceira que ex-siste às duas outras. Lacan suporta esse “elo”: sintoma e inconsciente, de um nó borromeano a 4 elos. “E não chegamos jamais a que tudo seja liberado do recalque – Urverdrangung – há um buraco, irredutível. É por isso que o analista não deve soltar a corda do sintoma que é “a nota própria da dimensão humana””.

O laço que propõe a psicanálise com a transferência é aquele que possibilita ao sujeito experimentar sua responsabilidade (subjetiva) e dessa forma, sua liberdade. Fácil ou difícil de assumir? Ao se expor ao “Sujeito suposto saber”, o sujeito tem a chance de se afastar de uma explicação que obture seu pensamento. Ele deverá construir um saber que lhe seja próprio. Isso é possível ao neurótico.

A psicose coloca questões bem particulares sobre estas questões de enlaces e desenlaces. O que aprendemos escutando estes sujeitos é que trata-se de dar a cada um deles a chance de inventar uma maneira de se alojar no mundo, pois eles não podem contar com nenhum Outro. Ocorre do sujeito inventar o Outro que ele poderá compartilhar com alguns outros e algumas vezes fazer uma subversão com eles: construir laços sociais via o sintoma. O que é surpreendente é constatar que de uma certa maneira o psicótico precedeu o homem contemporâneo em sua maneira de encontrar soluções suscetíveis de renovar o laço social aí se incluindo, e isso sem esperar apoio do Outro normativo. Podemos então dizer que ele está, mais que os neuróticos, à altura das exigências éticas do mundo contemporâneo.

Os psicóticos nos trouxeram bastante: Artaud que não acredita no laço entre a palavra e a coisa, Nasch que inventou uma teoria que elimina toda subjetividade, e há também Rousseau, Joyce, Pessoa, Van Gogh, Cantor, Gödel, Gauss, e vários outros. O psicótico tem, portanto, aptidão para inventar o Outro no qual ele encontra alojamento para sua singularidade … pelo menos por um tempo.

Podemos apostar que este Encontro tratará de todos estes desenlaces, de novos modos de enlaces e do lugar fundamental da psicanálise, de sua responsabilidade mesmo, em um novo modo de laço social a ser considerado pelo sujeito.

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