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Prelúdio 11 – Sônia Campos Magalhães
“Austismo: uma questão crucial proposta à psicanálise”

No momento em que a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil escolhe, como tema de seu XVII Encontro, “Problemas cruciais da psicanálise na atualidade”, pareceu-nos que poderíamos considerar o autismo como uma questão crucial proposta à psicanálise.

Sabemos que, desde que o psiquiatra austríaco Leo Kanner descreveu, em 1943, a sintomatologia do autismo infantil, o interesse pelas questões relativas ao autismo não cessou de crescer.

Ao descrever o comportamento particular de um grupo de crianças autistas em sua clínica em Viena, em 1944, Hans Asperger trouxe à luz dados surpreendentes em relação a algumas dessas crianças o que suscitou, mais ainda, o interesse pelas questões relativas ao autismo.

Pelo mistério que envolve o autismo, em torno dele vem se travando uma batalha entre modos de saber bem diferentes. As questões que suscita têm mobilizado praticamente todos os ramos da biologia, da medicina, da psicologia, da educação, da filosofia, das teorias da aprendizagem, assim como a psicanálise em suas várias orientações.

O autismo vem colocar questões a serem discutidas por todos aqueles que se preocupam com os problemas cruciais que se situam em um mundo marcado pelas mais diversas intolerâncias e por preconceitos.

Enfrentando as pressões daqueles que visam descartar a psicanálise do atendimento a autistas, a clínica psicanalítica referente ao autismo tem propiciado o surgimento de inúmeros trabalhos trazendo contribuições importantes. Entre os analistas que buscam dizer quais seriam os pontos nodais em torno dos quais se articula a abordagem psicanalítica do autismo à luz dos ensinamentos de Freud e Lacan, devemos destacar Rosine e Robert Lefort.

Entre muitas outras contribuições vindas de psicanalistas, gostaríamos de chamar atenção para o que nos diz Jean-Daniel Causse, em Les paradoxes de l’autisme[1]. Referindo-se ao autismo como um paradoxo, Causse recorre ao sentido etimológico do termo paradoxo: o que se opõe à doxa, isto é, o que coloca a opinião comum diante de um impasse conceitual. O paradoxo vai de encontro à razão estabelecida, ou a transtorna, desnorteia. Segundo Causse, é neste ponto preciso que se deveria situar a questão do autismo não só a partir do que nos dizem os grandes teóricos e clínicos, como Leo Kanner, Hans Asperger, Frances Tustin e tantos outros, como também quando nos colocamos à escuta dos testemunhos de sujeitos autistas ou que lhes são próximos, como Jim Sinclair, Temple Grandin, Donna Williams e outros.

Causse afirma que o paradoxo conduz a uma ética, mais ainda, o paradoxo é, em si mesmo, ética, porque o paradoxo considera o singular, o cada “um”, e permanece avesso à ideia de um indivíduo redutível aos traços que o compõem. A singularidade da criança autista se mostra tanto mais viva, mais frontal e, também, tão mais delicada a assumir, uma vez que ela se isenta do mundo simbólico de troca que é organizado pelo que falta a todos. O sujeito autista não se inscreve no espaço comum; sob esse aspecto, ele é a-típico porque é sem lugar, a-topos, o que fazia Jim Sinclair dizer em Toronto, em 1993: “as pessoas autistas são ‘estrangeiras’, seja qual for a sociedade em que estejam [2]”.

Diante desse paradoxo, desse mistério, dessa estranheza referentes ao autismo, pareceu-nos interessante destacar um fragmento de Les paradoxes de l’autisme onde Causse faz as seguintes considerações:

[…] a criança autista é, sempre “um estrangeiro e viajante sobre a terra”[3]. A singularidade dessa criança vem colocar em questão a nossa cultura. Por sua maneira de estar aí sem estar, ela vem desvelar as concepções contemporâneas de saúde, de bem-estar que nos conformam a modelos e a comportamentos. Por efeito de engodo, todo um discurso atual faz passar como alteridade e uma promoção de diferenças o que não é senão a construção multiforme do “mesmo”. Nós nos pensamos múltiplos e somos levados ao idêntico e aostandard. Aliás, em um tempo que é o do culto da performance, da rentabilidade, da mercantilização extrema, o sujeito autista atesta, de uma maneira talvez exemplar, o “por nada” de cada existência, o inútil e o não avaliável. Eis porque ele nos interroga – ele que não coloca questão alguma – sobre o que constitui um mundo humanizado, portanto, um mundo, simplesmente. [4]

Em face das questões que o autismo vem situar para os psicanalistas, convém lembrar que Freud, no exercício de sua prática clinica, ao forjar os conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, se deu conta de que a psicanálise lida com um ser que, além de dispor da fala, é, pode-se dizer assim, um ser de fala. Na vertente dessa orientação vinda de Freud, Lacan dirá que um determinismo inconsciente organiza a existência do ser falante e que tal determinismo vai se revelar como o da própria linguagem.

Em seu livro Atos de fala, Jairo Gerbase nos diz:

Há um corpo que fala. Falar não é aprendido. É da natureza ou do real desse corpo falar. Queremos saber como Freud percebeu a especificidade do corpo falante a ponto de formular uma terapêutica baseada nesta especificidade.[5]

Falar implica uma escolha do sujeito. No que diz respeito à criança autista, muito cedo ela mostra sua escolha de não se deixar alienar nos significantes do campo do Outro, contrariamente ao que se passa com a maior parte dos bebês.

Em alguns autistas, pode-se observar uma relação bem particular que eles entretêm com um objeto que, diferentemente do objeto transicional, é um objeto autístico. São diferentes as modalidades de um autista vir a lidar com este objeto ao qual ele se cola, objeto que se torna essencial, inseparável do sujeito.

Muitas vezes, diante deste objeto estranho eleito pelo autista, os pais e também aqueles que lidam com esse mistério, se sentem confrontados com um enigma desafiador.

Uma pergunta insiste: como vem o analista se situar diante deste mistério do corpo falante que é o autismo?

Seguindo os passos de Freud e Lacan e de tantos estudiosos e pesquisadores das questões cruciais que o autismo está a colocar, acreditamos poder dizer que o psicanalista vem se situar, conforme a ética da psicanálise, com o Desejo do analista, em uma neutralidade que implique estar aí de uma forma tal como se não estivesse, um estar aí que, de forma inventiva e não invasiva, venha dar lugar a uma possível passagem à fala, a um acesso à voz para o autista.

É a nossa aposta.

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[1] CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique In: CAUSSE, Jean-Daniel; REY-FLAUD, Henri (Dir.). Les paradoxes de l´autisme. Université Paul Valéry, Montpellier III/Centre de Recherches Interdisciplinaires de Sciences Humaines et Sociales (CRISHS). Toulouse: Éditions Érès, 2011. p.13.

[2] CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique, op. cit., p. 14 (Tradução livre nossa).

[3] Epístola aos Hebreus (Apud CAUSSE, Jean-Daniel. Avant-propos: paradoxe et éthique, op.cit. (Tradução livre nossa).

[4] CAUSSE, Jean-Daniel. Les paradoxes de l’autisme, op.cit., p. 14

[5] GERBASE, Jairo. Atos de fala. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2015. p.30.

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