Prelúdio 17 – Vera Pollo
“A criança no imaginário e o imaginário da criança”
Por que motivo, justo no encerramento de uma Jornada sobre as psicoses da criança, Lacan se pôs a falar da “entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação” (1967/2003, p.367)? E por que, nesse momento, define como “enganosa” a ideia de “escolha” da estrutura, seja ela a neurose, a psicose ou a perversão? Por que, enfim, privilegia o termo “criança” em detrimento de “infância” ou “infantil”?
São muitas as questões que se podem levantar de uma reflexão conjunta sobre as psicoses e a criança. No esforço de produzir esta breve elaboração de um problema crucial para a psicanálise – conforme o tema proposto para o nosso Encontro Nacional -, oscilei justamente entre escrever sobre o tratamento possível das psicoses e a prática psicanalítica com crianças, um e outra sendo indubitavelmente campos em permanente construção e, por isso mesmo, de fácil propensão a desvios.
No primeiro caso, o campo das psicoses, bastaria lembrarmos quanto tempo os psicanalistas recusaram-se a aceitar sujeitos psicóticos em análise, e o quanto é polêmica a discussão sobre autismo, a tal ponto que se passou a falar em “espectro dos autismos”, assinalando desse modo os diferentes empregos do vocábulo “autismo”. No campo da psicanálise com crianças, produziram-se muitas confusões em torno de uma suposta etapa pré-verbal do desenvolvimento da criança, produziram-se e ainda se produzem confusões em torno da ideia de “harmonia do habitat materno”, esta ainda mais suposta. Como se os significantes não ordenassem a nossa vida do princípio ao fim! Como se toda mãe não fosse, também ela, um ser atravessado pela linguagem e pelo inconsciente!
Ao escrever a segunda versão de “O estádio do espelho”, em 1949, Lacan reconheceu que varria com ele alguns preconceitos sobre a função do imaginário, mas seguiu acentuando a permanente tensão erótico-agressiva característica das relações ditas “duais” e criticou as interpretações pretensamente analíticas que desconsideravam a incidência do simbólico. Consequentemente, pensou-se que Lacan não via com bons olhos o registro do imaginário, o qual se assemelharia a um “saco de gatos” ou, no mínimo, um elo desprezível cujo descarrilamento anuncia o delírio. Forjou-se o equívoco de que se poderia, e até se deveria, zerar o imaginário. Equívoco que só se dissolveria ao final do ensino de Lacan, quando ele decidiu cotejar a leitura da obra de Joyce e o estudo dos nós. Quid do corpo próprio, do amor e do ódio sem o enlace do imaginário sobrepondo-se aos demais registros?
Talvez possamos dizer, parafraseando a observação de Lacan, em 1958, acerca do complexo imaginário das mulheres que “as imagens e os símbolos na criança não podem ser isolados das imagens e símbolos da criança.” As crianças querem ser “as populares” e nós lhes entregamos brinquedos ditos “transformers”, para que comecem a sonhar com um corpo sem limites de forma e de textura. Pois hoje, alteramos desde a coloração da pele aos órgãos ditos “genitais” e, claro, volume dos seios, nádegas e abdome.
No ano que vem, a conferência de Lacan sobre as psicoses da criança completará meio século. Constatamos diariamente a “previsão” lacaniana de estarmos em uma “época planetária” de múltiplos imperialismos e de uma “segregação sem precedentes”, a qual separa “massas humanas fadadas ao mesmo espaço.” Nem toda criança é sinônimo de “infância”, menos ainda de “infantil”. Como objeto a, ela pode ser causa-de-desejo ou objeto mais-de-gozar. E como ser-para-o-sexo, que diremos enquanto psicanalistas?