Skip to content

Prelúdio 20 – Ana Laura Prates
“A terra salgada faz litoral ou #somostodosíndi(c)os”

Entre centro e ausência, entre saber o gozo, há litoral. (Jacques Lacan)

E era como se naquele imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos antigos onde nossos sangues se haviam misturado. Eis a razão por que demorávamos na adoração do mar: estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras.

– Somos da igual raça, Kimdzu: somos índicos

(Mia Couto)

Por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria. Terra, Terra. (Caetano Veloso)

Em O sal da terra (Wenders, 2015), somos brutalmente confrontados com o que não queremos ver. O olhar de Salgado recortou a realidade indicando um real. Até que seu olhar caiu e ele perdeu a fé no homem, após testemunhar e fotografar um dos maiores genocídios do século 20 e ver, no olhar do outro, a perda da perspectiva de qualquer utopia. Ele havia publicado em Êxodos (2000) o que nomeou de “história da humanidade em trânsito”. O relatório Global Trends aponta 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerra e conflitos até o final de 2015. Sabemos que a noção moderna de Estado Nação criou um mundo com fronteiras.

Por sua vez, a falsa promessa da Globalização através da pretensa unificação promovida pelo capital e pela informação leva ao que Milton Santos chama de esquizofrenia do espaço, apontando para o fato de que nessa nova ordem mundial, e apesar das aparências, o Estado se torna mais forte e mais presente, a serviço da economia dominante. A face fascista do Estado e seu sintoma mais obsceno – o nacionalismo – nunca esteve tão explícito, inclusive no Brasil. Essa lógica só faz recrudescer o racismo, a segregação sistemática e seu corolário: o campo de concentração generalizado, tal como previsto por Lacan e sistematizado por Agamben na noção de homo sacer. Talvez o caso brasileiro mais dramático e obsceno seja o dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Ora, nós, que nos declaramos publicamente analistas, não podemos nos alinhar aos piores cegos. Fazendo jus ao efeito feminizante da letra que experimentamos no divã, podemos propor outro topos e, pelo princípio de solidariedade, precisamos sustenta-lo na polis.

A experiência analítica nos ensina a inventar esse outro topos a partir do caráter estrangeiro d’alíngua, tal como Lacan transmite em Lituraterra. Na pena de Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, a mulher é a única a ver a devastação e o gozo que a civilização encobre. Ela que, na continuação da trama Ensaio sobre a lucidez, é morta justamente por enxergar longe demais. Saramago revira o lugar da “visão interior” de Tirésias, projetando o olhar para fora, mas nem por isso tornando-o mais visível. O analista tampouco pode deixar seu olhar mortificar-se pela visão do terror. Lacan nos indica: o que o sintoma institui, com sua política, é passível de interpretação.

Salgado, após depor seu olhar, dá uma volta a mais nesse outro espaço topológico que atravessa territórios e fronteiras, não pelo capital, mas pelo litoral. Lacan distingue a fronteira do litoral que é fundante da letra, enquanto borda do furo no saber, desenhando a margem com o gozo. A partir desse outro topos, Salgado conclui que “a raça humana é somente uma” e inventa um novo território.

O litoral de Salgado é traçado com as letras de seu nome: “o sal da terra”. E Wenders é o passador desse sal que aduba o renascimento das fontes. A partir das terras secas herdadas do pai e das vidas secas que fotografou, Salgado promove o escoamento das águas, sedimentando seu sal e fazendo brotar a vida na terra. A vida na Terra. Afinal, #somostodosíndi(c)os

Back To Top