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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio II
PARA CONTRARIAR A TANATOPOLÍTICA
Vera Pollo

Seres falantes, dizemos ter um corpo e não que o somos. Isto é suficiente para nos ensinar que, inscrito nos registros do Imaginário, do Simbólico e do Real, nosso corpo não é exatamente um organismo, e não deve ser tratado como carne. O corpo do falante é uma imagem que o captura, o recorte significante de uma narrativa histerohistórica e, sobretudo, objeto do gozo do Outro (da ciência, em particular), por meio do qual um corpo se goza, se consome e se consuma.

À questão colocada por Freud desde Totem e Tabu(1912-1913): como acabam por se atrair os corpos que gozam solitariamente? Lacan[1] (1970) responde com o auxílio da Linguística: os corpos só copulam porque as palavras copulam no inconsciente. Incorporada, a linguagem faz afeto. Amor, ódio e ignorância não existem sem o corpo, tampouco sem o pensamento. São afetos do sujeito. Prova-o, exemplarmente, o discurso do Mestre contemporâneo, em que capital (S1) e ciência (S2) se fazem cúmplices do poder dessubjetivado.

Em fevereiro deste ano presenciamos via WhatsApp uma bonita manifestação em que as pessoas, a maioria negra, todas elas vestidas de vermelho, ostentavam cartazes em que se podiam ler os dizeres “Oferta de carne negra”. Ao mesmo tempo gritavam bem alto: “Vidas negras importam!” A mensagem que se lia no cartaz era uma referência explícita ao brutal assassinato de um jovem negro, de dezenove anos, cometido pelo assim chamado “segurança” do Supermercado Extra na presença de uma pequena multidão de pessoas que assistiam atônitas, algumas provavelmente indiferentes. Muito raramente, alguém solicitava ao autor do crime que parasse, mas a única intervenção direta foi a do outro segurança do estabelecimento, amarrando as pernas do jovem que, embora já inerte, ainda era objeto do gozo violento do algoz. Ele era muito jovem. E era negro. Homo sacer, conforme lembrou Agamben[2], nenhum crime será atribuído àquele que o matou. Para além da biopolítica, cuja visada era a produção de “corpos dóceis”, como bem assinalou Foucault, a necropolítica (Mbembe, 1957) ou a tanatopolítica (Agamben, 1942) da contemporaneidade produz “vidas nuas”, isto é, “corpos matáveis”.

Poucos dias antes dez adolescentes, cujas idades variavam de 14 a 16 anos, tinham seus corpos inteiramente carbonizados no interior dos containers em que haviam sido alojados como “carnes” aguardando o abate. Seus congêneres, os sobreviventes que não estavam nos containers, terão outro destino apenas um pouco menos atroz: serão vendidos a preços inacreditáveis, em processos que serão denominados “passes”. Uma ironia sonora para todo psicanalista lacaniano!

Numa sociedade em permanente estado de exceção[3], na qual a lei, embora reconhecidamente válida, não tem vigência, o estatuto dehomo sacer reúne sujeitos que se encontram em situações tão díspares quanto os refugiados nos “campos humanitários” na África e na Europa, os detentos nas prisões do Brasil, os doentes terminais e os moradores de Santana, em Roraima, que recebem sete reais por mês para servirem de cobaias nas pesquisas médico-científicas sobre a malária.[4]

Seriam infindáveis os exemplos em que “o homem é lobo do homem”, uma das formas de se dizer o que vem sendo chamado de tanatopolitica. Resta-nos apostar, inclusive emprestar o corpo, por que não, à política correspondente aos laços do discurso histérico e do discurso do analista. Este não faz multidões, mas acolhe a fantasia, agencia a causa e promove a queda de ideais paralisantes. No laço histérico tem lugar a busca de um mestre animado pelo desejo de saber, contrariando a paixão pela ignorância. Parece ser esta a política que mais do que nunca precisamos, para contrariar o estado de ignoródio (Quinet, 2019[5]) em que vivemos.

[1] Particularmente em Radiofonia.

[2] “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I” (Editora UFMG, 2002).

[3] Cf. Walter Benjamin

[4] Cf. pesquisa de Marcus Vinícius Xavier de Oliveira, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia.

[5] “O ignoródio ao gozo do outro”, 7 de dezembro de 2018. Revista Cult.

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