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XX Encontro Nacional da EPFCL – BR

Prelúdio VII
O EM-CORPO ALMODOVARIANO
Sandra Berta

Parto de uma frase do Seminário de Colette Soler “O em-corpo do sujeito” (2001- 2002):

Então temos escolha. Ou bem se pensa o sintoma do lado da doença, uma desordem que é uma doença: Doutor, diga-me o que há, é um vírus, o cérebro, um gene? Ou bem nós o pensamos do lado da dissidência política e social.[1]

É nessa dissidência política e social que um corpo doente como o de Salvador Mallo – o i(a) de Almodóvar – pode ser o escopo da passagem para um corpo em questão. “Dor e gloria” – belíssimo filme, possivelmente um dos mais poéticos desse escritor e cineasta – levanta diferentes questões sobre a ex-sistência, mas fundamentalmente faz referência aos caminhos tortuosos e depressivos de um corpo adoecido – ameaçado pela velhice – que poderia ficar aprisionado na ordem médica. Não é isso o que acontece. Não é isso que passa. A trama nos leva da dor, através do uso da heroína, até a retomada das vias do desejo. Isso coloca a questão sobre a possibilidade de se passar de um corpo policiado (policé) pelo discurso dominante da ciência que foraclui o sujeito, para um corpo que carrega as marcas de uma singularidade na qual gozo e desejo se enlaçam retomando ahystoria – El primer deseo, nome dado ao filme dentro do filme, cena determinante que enoda gozo sexual, desejo e amor.

Um corpo almodovariano no qual a “abjeção singular, própria a cada um”, poderá vir à tona para dizer do desejo como condição absoluta. Seria essa uma dastrilhas na qual uma psicanálise engaja um sujeito para fazer do corpo in-di-viso, singularidade e contingência, para tratamento permanente do impossível?

Afinal, o sintoma singular faz suplência a esse impossível que Lacan nomeou: não há relação (rapport) sexual. Esse é o paradigma da dissidência política e social pelo qual o em-corpo (en-corps, encore) do sintoma aporta para a psicanálise sua visada política.
Perante o imperativo que impele gozar da vida trazendo inumeráveis indicações e contraindicações do que devemos fazer para viver mais…, na brecha do instante do sujeito, no tempo lógico no qual a marca do gozo escapa ao imperativo e chega a seu destino, desloca-se a chance da escolha na qual o singular não desiste do laço possível.

Almodóvar disse que em Dor e Glória fala da sua infância e da sua adolescência, do sentimento de estranheza que lhe habitara. E faz esse filme, precisamente sabendo “que me he hecho más frágil con los años” … “aceptando valorar la época en la que viviste muy peligrosamente”.

Uma fragilidade – em-corpo almodovariano– que escreve sua fixion.

Os psicanalistas deveríamos estar atentos a essa fragilidade singular, diferente do padecimento sintomático. É no detalhe que uma psicanálise acontece.

São Paulo, 07 de julho de 2019.

[1] Soler, C. O em-corpo do sujeito, seminário 2001-2002. Salvador: Ágalma, 2019, p. 221.

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