Prelúdio 01 – Dominique Fingermann
PSICANALISTAS: “mais um esforço!”[1]
RESPONSABILIDADE DO DISCURSO DO PSICANALISTA NA ATUALIDADE
“Psicanalista, mais um esforço para ser contemporâneo!”
É comum ouvirmos entre nós: o Discurso do Psicanalista é incompatível com o Discurso do Capitalista; o sujeito da modernidade que possibilitou o “acontecimento Freud” já não seria mais condizente com o sujeito do mundo contemporâneo. Os tempos que correm, a maquinação da ciência com o mercado conspiram para não nos deixar psicanalisar tranquilamente como outrora.
Uma outra versão desta mesma desconfiança é dizer que a psicanálise, inventada no século XIX, não combina mais com a temporalidade do século XXI. “Psicanalista, mais um esforço para ser contemporâneo!”: abram seus círculos fechados e viciosos, ventilem seus velhos conceitos, renovem seus jargões, avaliem a sua eficácia, democratizem suas instituições, encurtem e barateiem as vias de formação, facilitem o acesso dos jovens analistas ao “mercado”.
Os problemas cruciais da psicanálise na atualidade consistiriam em uma questão de adequação ou inadequação do psicanalista ao discurso contemporâneo (ou seja, à modalidade de tratamento do gozo que o século XXI oferece).
Com mais de vinte anos de distância, Lacan, atento à questão da extensão da psicanálise no mundo, enuncia quase a mesma sentença imperiosa e zelosa, ligando a permanência do Discurso Psicanalítico no mundo à presença efetiva dos analistas responsáveis pela posição do inconsciente.
Em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), Lacan condiciona a permanência da práxis analítica conectada ao “horizonte da subjetividade da época”, à formação do analista, “o fim da análise didática”: “longa ascese subjetiva”.[2] Lembramos o rigor de seu imperativo, que almeja proteger a prática da psicanálise de sua obsolescência: “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.[3]
Em 1974, na “Nota Italiana”, Lacan persevera, e sua injunção assesta precisamente o famoso “autorizar-se de si mesmo”, que causa tantos mal-entendidos na comunidade analítica a respeito da orientação lacaniana: “Que ele não se autorize a ser analista, porque nunca terá tempo de contribuir para o saber sem o que não há chance de que a análise continue a dar dividendos ao mercado”.[4]Autorizar-se de si mesmo é um acontecimento ético que só pode acontecer ao cabo de uma demonstração lógica. “Autorizar se de si mesmo” é um ato ímpar, oriundo da prova da solidão e de singularidade de quem não se apoia mais no saber e na garantia do Outro mas no saber do inconsciente, que ele precisa fazer valer em cada caso, cada ocasião que a demanda analisante atualiza. Será desde esta solidão que o psicanalista deve “contribuir ao saber” da psicanálise e explicitar frente a alguns outros as “razões da sua clínica”.
Psicanalistas, mais um esforço!: “Para que a psicanálise torne-se um ato por vir ainda”[5]
O problema crucial da psicanálise na atualidade é a manutenção de sua posição atópica (a posição do inconsciente), e a perseverança da subversão topológica de seu laço ao avesso do bom senso e da moral do mundo.
O problema crucial da psicanálise permanece sendo a formação do analista capaz de inventar a radicalidade de seu ato ímpar, do qual ele precisa dar prova. A prova de analista é o seu estilo, a sua distinção, a sua resposta singular, seu sinthoma dirá Lacan, isto é, sua resposta à “não relação sexual”.
Freud estabeleceu a “regra de três” dessa provação: análise didática, estudo da teoria, supervisão. Lacan inscreveu a Escola como lugar dessa prova e da garantia da manutenção das condições do ato. A deformação do analista, subsequente à sua subversão pela sua análise pessoal, precisa ser garantida pela sua provação permanente; sua maneira de praticar o estudo da teoria e de se arriscar na supervisão será suficiente se, e somente se, permanecerem necessárias e não cessarem de se inscrever.
Qual seria a urgência da manutenção da presença da psicanálise no mundo?
A finalidade da experiência da psicanálise, que a vetoriza até seu fim, consiste em proporcionar uma via de acesso à singularidade, ao “Há Um”, que causa cada Um como ímpar, diferentemente do universal da castração e das suas incidências particulares.
Daí decorre a urgência e a dimensão eminentemente política da psicanálise, que pode fazer frente ao mal-estar da civilização da atualidade.
Freud, em seu tempo, não deixou de se preocupar em relação aos cataclismos da humanidade que assombravam a sua atualidade. Lacan, por sua vez, desde a sua apreensão clínica da estrutura do humano, pôde infelizmente antecipar o que estava por vir dos acontecimentos da nossa atualidade.
Não por acaso, no texto princeps que interpela e orienta a formação do analista, ele alerta a respeito do mal-estar contemporâneo: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”.[6]
A responsabilidade do Discurso do Psicanalista hoje é a sua consideração fundamental, a contracorrente do Discurso comum pela angústia e o sintoma, sinal do real e signo da marca singular da estrutura no sujeito. Quando esta marca não é mais relevante para a ex-sistência de cada Um, então a universalização acachapante e a segregação dos excluídos do mercado e da sua globalização colocam em xeque o melhor que pode acontecer quando alguém consegue pôr em jogo, no jogo da civilização, a causa da sua singularidade.
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[1] SADE, Marquês de. (1795). A filosofia na alcova. São Paulo: Illuminuras, 1999, p. 454. “(…) Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”.
[2] LACAN, Jacques (1953). “Função e campo da fala e da linguagem” In: Escritos, op. cit., p. 322
[3] Ibid.
[4] LACAN, Jacques (1974). “Nota italiana” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 314.
[5] LACAN, Jacques (1968). “Introdução de Scilicet” In: Outros escritos, op. cit., p. 293.
[6] LACAN, Jacques (1967). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos, op. cit., p. 263. Outras referências sobre o tema podem ser encontradas no texto Petit discours aux psychiatres (inédito, pronunciado em 11/10/1967).