Prelúdio 12 – Marcia de Assis
“Antes de mais nada, que haja psicanalístas {1}”
O porvir, uma ilusão? Inicio com a interrogação que me acompanhou enquanto assistia, na telinha, às cenas impactantes do horror acontecido em Nice, quando a fúria desenfreada atropelou centenas de pessoas (dentre elas, várias crianças) na Promenade des Anglais.Desvarios da sociedade contemporânea e do capitalismo que vigora com seu empuxo à universalização e efeito segregador subsequente, comprometendo os laços sociais.
Freud {2} não dissimulou o seu pessimismo em relação à humanidade e à civilização, asseverando encontrar-se presente em todos os seres falantes uma inclinação agressiva, disposição pulsional originária, traço indestrutível do humano, obstáculo à civilização. Tomou o desenvolvimento cultural como uma luta pela vida, com a seguinte ressalva: Quem poderá prever o desenlace?
Lacan{3} também lançou os seus avisos ao dizer que não pintaria um futuro cor-de-rosa, advertindo sobre o aumento do que se enraíza na fraternidade do corpo, o racismo. Alguns anos antes, já deixara seu apelo em forma de questão acerca do futuro da psicanálise: por quem serão retomadas as indicações de meus Escritos, quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes da civilização?{4} Isso nos convoca, certamente.
O que fazer? Extrair da prática a ética do bem-dizer, fazendo funcionar o saber no lugar da verdade para ser digno da transferência. Dito de outro modo, posicionar o Inconsciente.
O que é um psicanalisante? Um sujeito com sua questão – o que sou? Um sujeito colocado em questão, isso não implica que haja psicanalista em sua função de causa? O que nos liga àquele que embarca conosco nessa aventura singular e se posiciona como analisante? Nessa aventura embarcam os filhos do discurso. É daí que nasce “nosso irmão transfigurado”.{5}
Que o real insista, confirmando a lei da castração, que leva o sujeito a enveredar pela via do desejo, indo buscar no Outro um objeto que lhe reponha a perda. O resultado do investimento libidinal outorga o brilho desejável à imagem virtual, conferindo valor erótico ao parceiro eleito para ocupar o lugar de semblante do objeto perdido. Eis o que permite mirá-l(a) com olhos de verdade. {6}
A aposta é feita na experiência, no discurso analítico enquanto laço social determinado por uma prática, e nos seus efeitos para além dos terapêuticos. O psicanalista talvez possa produzir uma saída do discurso capitalista ao provocar/convocar o sujeito desejante, aquele que se encontra amordaçado no discurso vigente, caso a aposta seja mantida na experiência original e que dela possam surgir sujeitos capazes de sustentar outro desejo, resultado da travessia analítica. Seremos poatas o suficiente?
Referências:
{1} Lacan, J. (1966) Do sujeito enfim em questão. In. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 237.
{2} Freud, S. (1930) El malestar em la cultura. In. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1988, vol. XXI.
{3} e {5} Lacan, J. (1971-72) O seminário, livro 19: … ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 227.
{4} Lacan, J. A psicanálise. Razão de um fracasso. In. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 349
{6} Dialogando com o prelúdio da colega Lia Silveira sobre uma frase do livro O amor nos tempos do cólera de Gabriel García Márquez.
Niterói, 2 de agosto de 2016