Prelúdio 02 – Beatriz Helena Martins de Almeida
A Mulher e o Real
É o primeiro ano da Rede de Pesquisa Psicanálise e Feminilidade do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. Já nas primeiras discussões, ao ler alguns textos freudianos acerca da feminilidade, colocou-se a questão sobre se seu conteúdo estaria ultrapassado, especialmente quando tomado pelo viés “sociológico”. Sem dúvida, e é preciso dizê-lo, a Psicanálise avançou. No entanto, o que é mais curioso é como algumas premissas permaneçam tão atuais, e pode-se observar tais evidências na clínica.
Como ponto de partida, cabe ressaltar que a sexuação nos seres falantes, tanto para Freud como para Lacan, não é um dado natural tributário da biologia. Tampouco, embora a anatomia tenha crucial importância nas identificações e nas posições sexuadas dos seres falantes, ela não é o destino. As questões de gênero, tão em voga na contemporaneidade, o atestam.
Freud se perguntava sobre o que quer uma mulher até o final de sua obra, perguntava-se sobre qual caminho conduziria a menina à feminilidade, uma vez que a menina tem na mãe seu primeiro objeto de amor e está inscrita na primazia do falo. Freud tratava dessa questão analisando as passagens da menina pelos complexos de castração e de Édipo. E, o fez, também, buscando localizar o que seria próprio da solução tanto pela masculinidade quanto pela feminilidade, ou seja, por sua diferença.
Minha proposta – no presente texto – não é retomar todos os pontos dos processos de identificação e sexuação no homem e na mulher, mas fazer um recorte que permita articular, na teoria da identificação ao tipo ideal de seu sexo, em Freud, e na teoria da sexuação em Lacan, alguns pontos no que concerne ao particular do gozo da Mulher, que possam nos levar a articular algo do Real e suas consequências para a direção do tratamento pela Psicanálise.
De modo geral, Freud partia de uma única libido, a masculina, e da premissa fálica para homens e mulheres. E da disposição à bissexualidade em ambos os sexos.
Para Freud, era de grande relevância que tanto meninos como meninas encontram na mãe o primeiro objeto de amor. O menino tem a mãe como objeto de amor e rivaliza com o pai. A descoberta de que existem seres desprovidos de pênis e o consequente temor da castração leva o menino a renunciar ao objeto de amor e à conclusão do complexo de Édipo, renunciando à mãe e identificando-se ao pai, com a promessa de ter os seus próprios objetos, uma mulher para si – que não a mãe – no futuro. Como diz Lacan, ele leva os títulos no bolso.
A situação da menina é bem mais complexa, pois a descoberta da falta de pênis nela e em sua mãe, e em algumas outras, forçam a menina a deslocar o objeto de amor da mãe para o pai, e é, portanto, pela castração que ela faz sua entrada no Complexo de Édipo, de conclusão bem mais difícil para ela. Para grande decepção da menina, a mãe é percebida como não tendo pênis, e é, assim, desvalorizada. A menina também se decepciona porque sua mãe não a proveu do falo, e por isso a hostiliza. Cabe dizer que essa posição da criança será recalcada e, portanto, estamos tratando de processos inconscientes. Freud apontava uma conclusão bem mais difícil na menina, não somente pela substituição de objeto de amor da mãe pelo pai, mas também porque nota clinicamente que ela não abandona completamente esta relação com a mãe, profundamente ambivalente, investida de amor e de ódio. A mãe nunca cai completamente: essa operação de deslocamento deixa um resto insolúvel, que pode retornar como desvalorização de si, da mãe, e de outras mulheres, como reivindicação fálica e como insatisfação, posição subjetiva que denominamos histeria.
O complexo de castração nas meninas também inicia ao verem elas os genitais do outro sexo. De imediato percebem a diferença e, deve-se admiti-lo, também a sua importância. Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ‘ter uma coisa assim, também’, e se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’; esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia psíquica. (Freud, 1933)
Seu afastamento da mãe, sem dúvida, não se dá de uma só vez, pois, no início, a menina considera sua castração como um infortúnio individual, e somente aos poucos estende-a a outras mulheres e, por fim, também à sua mãe. Seu amor estava dirigido à sua mãe fálica; com a descoberta de que sua mãe é castrada, torna-se possível abandoná-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade, que há muito se vinham acumulando, assumem o domínio da situação. Isso significa, portanto, que, como resultado da descoberta da falta de pênis nas mulheres, estas são rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o são pelos meninos, e posteriormente, talvez, pelos homens. (Ibidem)
É interessante que Freud listou uma série de acusações que aparecem nas reminiscências das mulheres que escuta em análise em relação às suas mães, sendo que destaca, especialmente, a acusação de que não teriam sido suficientemente amamentadas por suas mães; o desmame ganha uma particular importância na subjetivação dessas mulheres, que reivindicam mais ‘substância’ de suas mães. Freud nota, na clínica, que algumas mulheres referem que a mãe seria tóxica, no sentido metafórico, podendo chegar, em casos de psicose, até o delírio de envenenamento por parte da mãe. Freud lê nessas queixas, pelo fato de a mãe ter sido a primeira pessoa que cuidou e nutriu o bebê, uma projeção, num encadeamento que passa pela nutrição-amamentação, o desmame, a intoxicação-envenenamento metafórico nas neuroses e imaginário nas psicoses, oriundos da ambivalência amor-ódio pelo objeto materno.
Esse passo no desenvolvimento não envolve apenas uma simples troca de objeto. O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida; […] uma parte dele é superada, ao passo que a parte restante persiste. […] Apresenta-se-nos, então, uma longa lista de acusações e queixas contra a mãe, as quais, supõe-se, justificam os sentimentos hostis da criança. […] O temor de ser envenenada provavelmente também está relacionado ao desmame. Veneno é comida que faz adoecer. (Ibidem)
No tocante à feminilidade, gostaria de privilegiar em Freud as elaborações sobre a ambivalência da menina em relação à sua mãe, e a dialética amor-ódio na qual se vê concernida.
A distinção anatômica [entre os sexos] deve expressar-se em conseqüências psíquicas. Foi uma surpresa, no entanto, constatar, na análise, que as meninas responsabilizam sua mãe pela falta de pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo, colocadas em desvantagem. (Ibidem)
A inveja e o ciúme desempenham, mesmo, um papel de relevo maior na vida mental das mulheres, do que na dos homens. (Ibidem)
Freud apontou três saídas para o complexo de castração na menina e para a consequente “inveja do pênis”:
A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal. (Ibidem)
Normalmente, grandes partes do complexo se transformam e contribuem para a construção de sua feminilidade; o desejo apaziguado de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um bebê e de um marido, que possui um pênis. (Freud, 1937)
Talvez possamos pensar que Freud não teve êxito em relação à sua questão sobre o que conduz uma menina à feminilidade porque justamente as três saídas apontadas por ele são todas saídas pela via do falo, que certamente reforçam por um lado o complexo de masculinidade, por outro o sentimento de desvalia nas mulheres.
No entanto, Freud perguntava-se a respeito de um resto inanalisável, que em alguns momentos chamava de ‘repúdio à feminilidade’, tanto por parte de homens como parte de mulheres.
É estranho, contudo, quão amiúde descobrimos que o desejo de masculinidade foi retido no inconsciente e que, a partir de seu estado de repressão, exerce uma influência perturbadora. (Ibidem)
Freud ponderou, inclusive, que “uma das coisas que remanesce nos homens, da influência do complexo de Édipo, é um certo desprezo em sua atitude para com as mulheres, a quem encaram como castradas” (Freud, 1931).
O ‘repúdio da feminilidade’ teria sido a descrição correta dessa notável característica da vida psíquica dos seres humanos. (Freud, 1937)
inda em Análise Terminável e Interminável, uma conclusão de Freud:
Freqüentemente temos a impressão de que o desejo de um pênis [na mulher] e o protesto masculino [resistência a passividade no homem] penetraram através de todos os estratos psicológicos e alcançaram o fundo. […] O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar esse fator num tratamento analítico. Só podemos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para reexaminar e alterar sua atitude para com ele [repúdio da feminilidade].
É interessante que Freud se depara com essa dificuldade na conclusão de uma análise, apontando algo de real, no entanto parece justamente localizar o ‘repúdio à feminilidade’ como obstáculo a sua conclusão, ou seja, a cura estaria franqueada justamente a partir de uma re-posição em relação à feminilidade, como se topar com a feminilidade e assumi-la fosse o próprio fim.
No tocante à direção do tratamento, partamos da pergunta deixada por Freud, sobre a saída pela feminilidade, e vejamos como Lacan a aborda.
Antes de avançar pela questão deixada em aberto, é importante esclarecer o que Freud denomina “falo”, para além do pênis; ou seja, vejamos o que representa o conceito de falo na estruturação da sexualidade. O falo enquanto representante do pênis – órgão genital masculino – comparece precisamente para simbolizar o órgão que pode precisamente faltar onde é esperado. O complexo de castração aponta justamente para a possibilidade de que se pode tê-lo ou não, e que se pode perdê-lo. Assim, o falo entra na dialética do desejo como concernente à falta de objeto, que designa o objeto como perdido. Assim, o falo concerne à castração e ao desejo.
Lacan evidencia a função do falo como operador simbólico, ao articulá-lo como significante. Precisamente, o significante da falta a ser.
Para Lacan (1957-1958), o falo é um operador imaginário e simbólico na constituição do sujeito. O sujeito se constitui na dialética entre “ser” e “ter” o falo. No primeiro tempo, a criança se identifica ao objeto do desejo de sua mãe, colocando-se em posição de ser o falo da mãe, já que o falo é o representante imaginário do que falta à mãe. No segundo tempo, o pai intervém como aquele que interdita a mãe de reintegrar seu produto, a criança-falo, o que deixa esta em suspensão quanto a ser o falo da mãe. Momento, este, em que a presença-ausência da mãe aponta para além da criança como objeto de seu desejo, o que escancara o enigma do desejo, “o que ela quer? o que sou no desejo dela?” No terceiro tempo, o pai entra em jogo significando o desejo da mãe, nomeia o desejo materno e franqueia a possibilidade para a criança de ter o falo como promessa, ou seja, o futuro homem, a futura mulher, poderão ter os seus próprios objetos. Para isso cada qual precisará se identificar e assumir um tipo sexual ideal e uma consequente escolha objetal.
É preciso enfatizar que essa operação de significação do desejo materno pelo pai deixa um resto, se acompanhamos bem Freud em suas elaborações sobre o complexo de castração. Há algo da mulher que não é recoberto pela mãe, e é irredutível à simbolização. Seja porque a mãe não transmite à filha a significação do sexo feminino, seja porque na mulher a solução pela maternidade, como restituição fálica, não dá conta da questão sobre a feminilidade.
Na travessia do complexo de castração pelos sujeitos neuróticos, operação da metáfora paterna como designada por Lacan, os sujeitos saem transformados no que tange à realidade, ao ideal e ao super eu. O sujeito vê sua realidade conformada pela fantasia: identifica-se ao tipo ideal de seu sexo, ao preço de uma perda de gozo no nível do ser; o gozo fica reduzido a um pedaço de corpo, ao que chamamos gozo fálico. Já as mulheres, essas experimentam o que Lacan designou gozo Outro, para além do gozo fálico. Gozo que escapa ao significante, sobre o qual, como indica Lacan, elas não dizem nem uma palavra. (Almeida, 2015, p. 43)
A função constitutiva do falo, na dialética da introdução do sujeito em sua existência pura e simples e em sua posição sexual, é impossível de deduzir, se não fizermos dele o significante fundamental pelo qual o desejo do sujeito tem que se fazer reconhecer como tal, quer se trate do homem, quer se trate da mulher.
O fato é que o desejo, seja ele qual for, tem no sujeito essa referência fálica. É o desejo do sujeito, sem dúvida, mas, na medida em que o próprio sujeito recebeu sua significação, ele tem que extrair seu poder de sujeito de um signo, e esse signo, ele só o obtém ao se mutilar de alguma coisa por cuja falta tudo será valorizado. (Lacan, 1957-1958, p. 285)
Independentemente da anatomia, o sujeito, por meio de seu posicionamento em relação ao falo, pode identificar-se a um tipo ideal masculino ou feminino e definir uma consequente escolha de objeto sexual. Essa operação psíquica, de onde o sujeito sai provido de um Ideal de eu, só é possível pelo advento da castração, que institui o feminino como Outro sexo, como alteridade absoluta. Nesse contexto, ganham sentido os aforismos lacanianos: ‘a mulher não existe’ e ‘não há relação sexual’, que apontam para o desencontro fundamental: não há relação de complementaridade entre os sexos. Considerando-se a premissa fálica para todo ser humano, o sexo feminino resta como o que escapa à representação. A mulher não existe porque seu sexo não pode ser representado. Não há relação sexual entre um homem e uma mulher, porque cada um, na dita relação sexual, está em relação com o falo e não com o outro. Estamos todos, neuróticos, remetidos ao falo enquanto significante da falta. Assim, podemos dizer que as mulheres participam do ordenamento fálico, muito embora as mulheres sejam ‘não toda’ fálicas, pois seu sexo não é passível de representação. (Almeida, 2015, p. 43)
Portanto, tudo o que é sexual é do registro da linguagem, de significantes, ou seja, do falo. Lembremos que, para Lacan, o falo é um significante. Assim, independente da anatomia, a sexuação é uma questão de significantes e de semblantes.
Lacan propõe o inconsciente estruturado como linguagem. Assim, a operação constitutiva do sujeito corresponderia à entrada do ser falante na linguagem como falado pelo Outro, momento traumático no qual, para se fazer representar pela linguagem, paga com a libra de carne, e o falo, longe de ser uma positividade, o símbolo de uma potência, se inscreve como uma negatividade, como a libra de carne que se perde para aceder à linguagem. Há uma perda no nível do ser, que corresponde à escolha forçada: a bolsa ou a vida! Para se fazer representar, é impossível fazê-lo por inteiro, essa operação deixa sempre um resto impossível de passar aos significantes. Não existe, em toda a bateria dos significantes, o significante último capaz de recobrir o ser e representá-lo por inteiro, capaz de responder ao enigma do ser. É assim que o sujeito é representado como barrado, como dividido pelo recalque, como sempre escapando a si próprio, deslizando como intervalo entre os significantes; um sentido evanescente, sempre escapando, escoando entre os significantes, como falta a ser, condenado ao desejo, cujo objeto metonímico está sempre alhures, é sempre outro. Desejo impossível para o obsessivo e insatisfeito para a histérica.
A palavra é a morte da coisa. A operação constitutiva de subjetivação é uma operação de incorporação pelo simbólico, que recorta o corpo e produz marcas na superfície, como cicatriz que dá notícia de que houve ferida, signo da presença do Outro como puro vestígio, bordas, orifícios de gozo, que a perda do objeto pulsional cavou no corpo: voz, olhar, seios, fezes, bebês e seus equivalentes, que os significantes vêm recobrir e articular em sintomas a memória do gozo perdido. Gozo mítico perdido do encontro total entre objeto e significantes, que não fazem relação. Ao que corresponde dizer que o campo do objeto e do gozo é heterogêneo ao campo dos significantes e dos sentidos provisórios; cuja significação fálica remete à falta de significantes e de significados que possam recobrir o vazio do objeto.
Isso supõe admitir o que, o sujeito que fala no humano, deve fazer com a inaptidão da linguagem para apreender o real, que responderia à questão do que ele é. Não há conexão entre o simbólico e o real. Lacan designa essa realidade do sujeito como ‘substância gozante’. O desejo é o efeito do encontro desta substância perdida no simples fato de falar. Daí a inexistência da relação sexual: não há relação sexual entre o simbólico e o real, e, portanto, entre os sujeitos que são representados pela linguagem que o real encontra entre um homem (o $ falante) e uma mulher (que dá carne a esse real que ex-siste no simbólico). (Sauret, 2018, p.196)
Esse resto impossível de simbolizar é da ordem do Real. Uma das maneiras de dizer da Mulher que não existe.
Lacan, no Seminário Mais Ainda (1972-1973), escreve as ‘fórmulas da sexuação’ em duas colunas, uma correspondente ao lado ‘Homem’ e outra correspondente ao lado ‘Mulher’, cada lado articulando seus modos de gozo.
Do lado ‘Homem’, Lacan localiza o gozo fálico, que vale para ‘todo homem’, é o lado do universal. Pela lógica, o universal funda-se pela exceção, cujo exemplo é o ‘pai da horda’ freudiano que, como exceção, é aquele que pode gozar de todas as mulheres, e que funda o conjunto universal de todos os homens, interditados e ordenados a funcionar segundo a norma fálica, ou seja, cuja imposição à perda de gozo do ser os restringiu ao gozo fálico. Logicamente, esse é o lado do “Existe Um que goza de todas as mulheres” e do “Todo homem está na função fálica”.
Do lado Mulher, Lacan localiza o Outro gozo, o gozo não redutível à significação, o gozo no corpo, do qual elas não dizem nada, e só se sabe que elas experimentam. A mulher participa do gozo fálico, pois o falo é, por excelência, o ordenador da sexuação, mas há algo dela que está além, um gozo suplementar, o Outro gozo. Desse lado não existe A Mulher da exceção que fundaria o universal, que fundaria o conjunto das mulheres. Se não há universal, a mulher é, portanto, contada uma a uma. Esse é o lado da alteridade, da diferença absoluta, da singularidade, do que não se deixa coletivizar pelo significante. Do ponto de vista lógico, desse lado é incluído o quantificador da negação: “Não Existe A Mulher” e “Não toda mulher está na função fálica”.
Daí a afirmação de que entre Um (Um da exceção) e Outro (Outro sexo) não há relação sexual, pois não há reciprocidade, não há proporção, não há complementaridade entre o Homem e a Mulher.
O lado Homem é o lado dos significantes, balizado pelo significante falo. O lado Mulher é o lado do objeto, em que se evidencia que não há o significante do Outro sexo. Portanto a relação entre um homem e uma mulher só é possível no nível dos semblantes. E o amor pode fazer suplência à inexistência da relação sexual.
Lacan (1971, p. 34) diz que a mulher como Outro Sexo se apresenta como a hora da verdade para o Homem, na medida em que representa o horror da castração. Freud apresentou esse ponto de encruzilhada da descoberta de seres desprovidos de pênis como o fenômeno que introduz o complexo de castração e que pode ter como consequência o ‘repúdio à feminilidade’. Lacan diz que “o que se costuma empacotar como complexo de castração” é o horror da verdade que se apresenta quando do levantar do véu. Sob o véu da fantasia não há nada.
Lacan (Ibidem) diz que a instância do inconsciente representa o horror da Verdade da disjunção entre gozo e semblante. Assim, a histérica se abriga desse horror pelo viés do falo, ela se faz de falo.
A histérica foge do irrepresentável da feminilidade. Põe-se ao abrigo no falo e se reveste dele como de uma carapaça. Ela não tarda, certamente, em sentir essa armadura fálica como uma prisão. […] O que uma mulher quer é que alguma coisa advenha ao lugar deste significante faltoso, que um ponto de apoio lhe seja fornecido precisamente lá onde o inconsciente a deixa abandonada. (André, 1986, p. 284)
Lacan em O Aturdito (1972, p. 465) apontou a “devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai”. E no Seminário O Sinthoma (1975-76, p. 98) acrescentou que o homem pode ser uma devastação para uma mulher, no mínimo uma aflição, pois como não há equivalência entre os sexos, uma mulher é um sintoma para todo homem, enquanto para uma mulher o homem pode ser uma devastação.
A mãe pode ser devastadora para a filha na medida em que não lhe transmite nada que assegure seu ser. É por essa via que ela pode esperar que um homem finalmente lhe revele sua verdade, mas a verdade se mostra em sua face de horror, eis a devastação, a levantada de véu não mostra nada além do desvelar o engodo da fantasia e do evidenciar o gozo opaco, não redutível ao falo e refratário a representação. A suspensão dos semblantes fálicos revelam o horror da verdade que pode se apresentar como devastação. (Almeida, 2018)
O problema que se coloca para a histérica é que ela busca subjetivar aquilo que do corpo e do gozo escapa à inscrição fálica, justamente pelo modo fálico, ficando assim presa num ciclo infernal, conformado pela fantasia, já que é pelo significante que busca responder pela impossibilidade de significância. (Ibidem)
Soler (2002, p. 167) aponta a direção: a feminilidade não se alcança pelo simbólico, mas pela experiência, no nível do corpo. Ser o sintoma.
A greve histérica em uma mulher é a negação a ser um sintoma-mulher. A histérica quer parecer uma mulher, ‘mariposear’ como uma mulher, mais que a outra, ainda melhor na comparação, porém ser o sintoma-mulher, é outra coisa! O sintoma-mulher, se joga a nível do corpo.
Talvez possamos deduzir, dessa definição, como a posição “sintoma-mulher” é solidária ao discurso do analista, a mulher sintoma encarnando o objeto de gozo – não toda fálica – para um parceiro dividido por seu desejo, cujo saber sobre a verdade mentirosa permite suportar que não há proporção entre os sexos. Despojada do Ideal, pode ocupar um lugar marcado pelo traço que a faz singular, nem melhor, nem pior, uma entre outras. Abre-se um passo, ainda que contingente, do ficar a desejar para o gozar da vida.
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A direção do tratamento na neurose pode incluir uma operação de esvaziamento da consistência imaginária da Mulher. Ir da Mulher que não existe em direção à assunção de uma mulher. Do impossível ao contingente, uma mulher, não-toda na função fálica, mas única em sua singularidade, aberta às contingências de criação e de um novo amor.
Talvez possamos localizar aqui o passe de Lacan, em relação à questão aberta por Freud (1937) em Análise Terminável e Interminável, que Freud localizou como “um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo”, e que Lacan chamou “Real”. Freud advertiu sobre o efeito tanto em homens quanto em mulheres do ‘repúdio à feminilidade’, que Lacan localizou como ‘a hora da verdade’ e como ‘horror da castração’, cujos efeitos imaginários podem ir desde a devastação até o extermínio em suas manifestações de ódio.
Assim que a política da Psicanálise, tanto micropolítica, na análise de uns sujeitos, quanto na macropolítica de uma época, possa contribuir para que ali onde não há nada, cada um possa comparecer com seu traço distintivo e não seja necessário obturar o vazio, mas evidenciá-lo e franqueá-lo às contingências do encontro e da criação.
Às vésperas do Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, cujo tema será Estratégia, Tática e Política da Psicanálise, e com base na Carta de Princípios de nossa Escola, podemos enfatizar que a política em que a Psicanálise nos orienta não é a política do Um da exceção, que leva à segregação; mas a política do Há do Um, que privilegia, no um a um, o traço de singularidade, base de qualquer política da multiplicidade, da inclusão pela diferença, que a feminilidade franqueia para os seres falantes de qualquer sexo.
Um pequeno parênteses, e duas expressões que marcam indelevelmente nosso momento político: o “lutar como uma menina” das estudantes secundaristas e o “#elenão” forjado pelas mulheres unidas, cada uma com o seu, qualquer que seja, mas ele não!, numa franca resistência ao retorno do totalitarismo, sempre à espreita, no discurso capitalista disfarçado de promessa de liberdade neoliberal.
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Beatriz Helen(ão) Martins de Almeida
Membro do FCL-SP e da EPFCL
São Paulo, outubro 2018