XX Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio X
A POLÍTICA DO CORPO, O AUTISMO E A POLÍTICA NO CORPO
Luis Achilles Rodrigues Furtado
A conjunção entre os termos “política, “corpo” e “autismo” nos causa um estranhamento de início: como falar de política do corpo em sujeitos que supostamente não estariam em relação com o simbólico? Seria possível falar de corpo? E de política?
Se Lacan fosse nordestino, paraíba (segundo a forma generalizada e preconceituosa utilizada pelo presidente do Brasil), em 1975 ele teria dito: “Peraí! Devagar com o andor que o santo é de barro!”. Mas ele disse em francês: “Se chama isso autismo. Isso se diz rápido. Não é forçosamente assim” (Lacan, 1975/2016, p. 73). Tal advertência ganha reforço quando consideramos que, semanas antes, ele havia utilizado a expressão “ditos autistas” (Lacan, 1975/1991). O mesmo cuidado de Freud (1921/1992), ao considerar o termo infeliz. Enfim, ambos estavam advertidos clínica e politicamente: não há psicanálise sem a suposição do sujeito e não há humano sem a dimensão da palavra, escutada, cantada, falada ou articulada. Esse é um ato clínico, ético e político.
Entretanto, não há como negar que o termo “autismo” se disseminou, faz parte do nosso cotidiano e é alvo de políticas públicas e de pesquisas que buscam fazer incidir a verdade científica sobre as pessoas que recebem esse diagnóstico. Ser autista hoje não é mais, simplesmente, uma questão de tratamento, é um movimento social e identitário chamado de “neurodiversidade”. Se esse movimento é importante por um lado, por dar visibilidade às dificuldades de muitas famílias, por outro, o problema dessa pulverização do termo autismo é que ele legitima políticas que congelam os sujeitos na posição de objeto do saber e do olhar científicos.
Assim, do drama que é o sofrimento de um sujeito que resiste com seu corpo ao peso das palavras e da relação com o Outro –– ou seja, político–– deslizamos para a incidência da política no corpo dos ditos autistas. As políticas de tratamento incidem sobre o corpo das pessoas que recebem um diagnóstico que, desde sua criação, é controverso e frágil. Fato que não impede que essas pessoas existam.
A advertência de Lacan –– freudiana –– nos lembra a política do tratamento psicanalítico. Freud, em alemão, também nos advertiu para que fôssemos devagar com o andor ao sugerir a suspensão do furor sanandi. Lacan (1975/2016) sugere aos seus supervisionandos que acompanhem o movimento dos autistas, e também diz que é justamente quando tentamos cuidar deles que eles não nos escutam (Lacan, (1975/1991). Há uma dificuldade nesta abordagem direta. O fato de eles aparentemente não nos escutarem quando tentamos ser diretos, invasivos, é o que faz com que não os escutemos. O que não impede que eles articulem muitas coisas e nem que possam ser sensíveis ao que temos a dizer-lhes. Escutar faz parte da palavra! Só faltou Lacan dizer: “Leiam a experiência de Klein com Dick! Ela lhe deu um nome!”. Hoje sabemos que não é à toa que aquele garoto viria a se tornar um leitor de Dickens, repetindo o fato de que sua analista lia para ele a estória de um garoto chamado Dick (Grosskurth, 1992).
Se os ditos autistas demonstram em seu corpo e em seus objetos a sua política, o seu modo de laço com o Outro, a política no corpo dos autistas os transformam em objetos de estudo, de medicalização, de institucionalização e de financiamento. Neste sentido, a psicanálise vai na contramão.
Assim, o trabalho com a psicanálise continua legítimo e imprescindível, pois –– tal como algumas famílias dos ditos autistas ou mesmo daqueles que assumem essa identidade –– a psicanálise lembra que antes do diagnóstico, existe alguém, existe um nome. Resta encontra-lo, discerni-lo, escreve-lo ou mesmo fabrica-lo.
Freud, S. (1992). Introducción a J. Varendonck, The Psychology of Day-Dreams. In Obras Completas Sigmund Freud (v. XVIII, pp. 63-136). Buenos Aires, Argentina: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1921).
Grosskurth, P. (1992) O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.
Lacan, J. (2016). Lacan in North America. Porto Alegre: Editora Fi. (Trabalho original publicado em 1975). Recuperado em 25 mar 2109, de: https://docs.wixstatic.com/ugd/48d206_445d32c81b984cabb0e1f0915545b928.pdf.
Lacan, J. (1991). Conferencia en Genebra sobre el síntoma. In Lacan, J. Intervenciones y Textos 2 (2a ed., pp. 115-144). Buenos Aires: Manantial. (Trabalho original publicado em 4 de outubro de 1975).