XX Encontro Nacional da EPFCL – BR
Prelúdio XIII
O (A)LARIDO DE UM CORPO QUE GOZA
Andréa Brunetto
Onde se localiza o gozo? É uma pergunta de Lacan em “A Terceira” (1974). Parte sua pergunta de uma onomatopeia que faz com o Discurso de Roma (1953) – o primeiro, que repercute nesse terceiro – e o ronrom do gato “que, sem dúvida alguma, é um gozo”.
A onomatopeia é a seguinte: ça fait dit-ce, disque our, ourdrome, disqu´ourdrome. Assim, o Discurso de Roma pode ser escutado disque-ourdrome. Lacan injeta essa onomatopeia na língua como um ronrom do gato.
Se com o Discurso de Roma sustentava que o inconsciente era estruturado como uma linguagem, nessa terceira, a tese é de que a partir desse inconsciente encadeado pelos significantes, não se alcança o ser. Com sua onomatopeia é do ouvido que se trata, é o som “esvaziado da substância que poderia haver no ruído que ela faz.”1 A voz está livre para ser outra coisa que substância, alega Lacan. De um je suis, Lacan chega a jouit, oui e a se jouit. Traduzindo: eu sou, goza sim, gossou. No português se perde a homofonia. No francês tem um oui que se repete, um sim ao gozo.
Com isso, Lacan dá mais um passo na correção do cogito de Descartes: Penso, logo se goza. Não é “eu gozo”, mas se goza. Dizendo em termos freudianos, é o tempo reflexivo do circuito pulsional – algo que sai de uma borda que, como uma flecha, faz seu trajeto e retorna, alcançando seu alvo que não é o mesmo de quando partiu2. Nesse percurso deixa um vazio, o objeto a, esse objeto sem ideia, sem representação, reduzido a uma função de causa. Esse objeto “separa o gozo do corpo do gozo fálico”3.
É por isso que em RSI, dois meses depois de sua terceira, pergunta: “O falo, o que é? É o gozo sem o órgão, ou o órgão sem o gozo?”4 Esse gozo do corpo, que se diferencia do gozo fálico, é o gozo da vida. Diferente dos animais – e darei um exemplo a seguir – esse gozo da vida, no humano, apela para ser civilizado pela língua. E é porque habita a língua que se faz inter-dito. Em “O Aturdito”, para falar do incestuoso interdito, no qual o humano se exila, Lacan se refere ao dilúvio e à ligação proibida dos anjos com as mulheres, seu bater de asas (aile), sua agonia (abois) que faz um alarido, e escreve ailarido. Os psicólogos podem chamar de alma (âme), mas ele, Lacan, escreve (a)larido, é o objeto a.5
Assim, o gozo da vida, nos animais, não faz a união do imaginário do corpo com o simbólico. Por isso, os animais estão num circuito de repetição sempre igual. Não é um gozo condicionado pelo simbólico, é o puro alarido do corpo.
Pensei nesse prelúdio andando por essa cidade repleta do Espírito Santo, como disse Lacan, com o corpo suando em exagero e os pés enfiados em suas calçadas quase amolecidas pelo sol infernal. Dias antes, eu estava no extremo sul desse mesmo país, em Lecce, cidade barroca cercada de doze igrejas e com praças com nomes de santos por todo o Centro Histórico – tão cheia do Espírito Santo como Roma – e observava os crepúsculos com suas revoadas de pássaros – andorinhas ou estorninhos, não tenho certeza. Com sua dança circular convulsiva pelos céus, exatamente no crepúsculo, nem meia hora antes, nem depois, faziam um alarido ensurdecedor, quase uma agonia. E quando escurecia, os gritos loucos, sem substância, se calavam. Completo silêncio nos céus. A minha pergunta: Por que exatamente sobre o Centro Histórico? Repleto de pessoas circulando, de turistas fotografando igrejas e comprando souvenirs, de conversas, vozes e vozes, numa grande balbúrdia? Minha pergunta já contém a resposta? É pelo som das vozes que fazem sua dança ali e não em outro lugar?
Não há nada no inconsciente que com o corpo faça acordo, alega Lacan. O inconsciente é dizcordante. O inconsciente determina o sujeito enquanto ser, e é preciso suportar o desejo mesmo que haja impossível de dizer como tal. Ou melhor, é preciso suportá-lo exatamente por isso. E mais adiante, nessa mesma aula do RSI, vai dizer que essa causa que causa sempre, já estava lá em seu primeiro discurso em Roma, “o irredutível disso que não é efeito da linguagem”.6 O irredutível é esse resto sem substância, um (a)larido do corpo que só salva o sujeito porque ele fala.
1 Lacan, J. A Terceira. VII Congresso da École Freudiènne de Paris. Roma, 31 de outubro de 1974.
2 Lacan, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1986, p. 171.
3 Lacan, J. A Terceira.
4 Lacan, J. O Seminário 22: RSI. Inédito, aula de 21 de janeiro de 1975.
5 Lacan, J. O Aturdito. Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZEditor, 2003, p. 455.
6 Lacan, J. O Seminário 22: RSI. Inédito, aula de 21 de janeiro de 1975.